julho 16, 2003

SINAIS (1) - Deleuze

Edmundo Cordeiro

Primeira parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.

"Se o tempo tem muita importância na Recherche [À LA RECHERCHE DU TEMPS PERDU, de Marcel Proust, "Em Busca do Tempo Perdido"], é porque toda a verdade é verdade do tempo. Mas a Recherche é em primeiro lugar busca da verdade. Desse modo se manifesta o alcance "filosófico" da obra de Proust: ela rivaliza com a filosofia. Proust esboça uma imagem do pensamento que se opõe à da filosofia. Ele atira-se ao que é mais essencial numa filosofia clássica de tipo racionalista. Atira-se aos pressupostos dessa filosofia. O filósofo pressupõe de bom grado que o espírito enquanto espírito, que o pensador enquanto pensador, quer o verdadeiro, ama ou deseja o verdadeiro, procura naturalmente o verdadeiro. Outorga-se antecipadamente uma boa vontade de pensar; toda a sua busca é fundada numa "decisão premeditada". Decorre daí o método da filosofia: de um certo ponto de vista, a busca da verdade seria o mais natural e o mais fácil; bastaria uma decisão e um método capaz de vencer as influências exteriores que desviam o pensamento da sua vocação e fazem que tome o falso pelo verdadeiro. Tratar-se-ia de descobrir e de organizar as ideias segundo uma ordem que seria a do pensamento, na forma de significações explícitas ou verdades formuladas que viriam preencher a busca e assegurar o acordo entre os espíritos.

Em filósofo há "amigo". É importante que Proust dirija a mesma crítica à filosofia e à amizade. Os amigos são, um relativamente ao outro, como espíritos de boa vontade que se põem de acordo sobre a significação das coisas e das palavras: comunicam sob o efeito de uma boa vontade comum. A filosofia é como a expressão de um Espírito universal que concorda consigo mesmo para determinar significações explícitas e comunicáveis. A crítica de Proust atinge o essencial: as verdades permanecem arbitrárias e abstractas enquanto se fundarem na boa vontade de pensar. Só o convencional é explícito. É que a filosofia, como a amizade, ignora as zonas obscuras onde se elaboram as forças efectivas que actuam sobre o pensamento, as determinações que nos FORÇAM a pensar. Nunca uma boa vontade, nem um método elaborado, foram suficientes para aprender a pensar; não basta um amigo para nos aproximar do verdadeiro. Os espíritos não comunicam entre si senão o convencional; o espírito não engendra senão o possível. Às verdades da filosofia, falta a necessidade, a marca da necessidade. De facto, a verdade não se entrega, trai-se; não se comunica, interpreta-se; ela não é requerida, é involuntária. […]"

[CONTINUA]