julho 16, 2003

Sinais (7) - Deleuze

Edmundo Cordeiro

Sétima e última parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.


"Proust é platónico, mas não o é vagamente, apenas por ter invocado as essências ou as Ideias a propósito da pequena frase de Vinteuil. Platão dá-nos uma imagem do pensamento sob o signo dos encontros e das violências. Num texto da REPÚBLICA (VII, 523b-525b), Platão distingue duas espécies de coisas no mundo: as que deixam o pensamento inactivo, ou lhe dão somente o pretexto de uma aparência de actividade ; e as que dão que pensar, as que forçam a pensar. As primeiras são os objectos de recognição; todas as faculdades se exercem sobre estes objectos, mas num exercício contingente, que nos faz dizer "é um dedo", é uma maçã, é uma casa… etc. Pelo contrário, há outras coisas que nos forçam a pensar: não se trata já de objectos RECONHECÍVEIS, mas de coisas que infligem violência, sinais QUE SE ENCONTRAM. São "percepções ao mesmo tempo contrárias", diz Platão. (Proust dirá: sensações comuns a dois locais, a dois momentos.) O sinal sensível inflige-nos violência: mobiliza a memória, põe a alma em movimento; mas a alma, por sua vez, comove o pensamento, transmite-lhe o constrangimento da sensibilidade, força-o a pensar a essência como a única coisa que deve ser pensada. Desta forma, as faculdades entram num exercício transcendente, cada qual embate no seu próprio limite e alcança o seu limite próprio: a sensibilidade que apreende o sinal; a alma, a memória, que o interpretam; o pensamento, forçado a pensar a essência. Sócrates pode dizer legitimamente: mais do que o amigo, eu sou o Amor, eu sou o amante; mais do que a filosofia, eu sou a arte; em vez da boa vontade, eu sou o peixe-aranha, o constrangimento e a violência. O BANQUETE, o FEDRO e o FÉDON são os três grandes estudos dos sinais.

Mas o demónio [espírito próprio] socrático, a ironia, consiste em antecipar os encontros. Em Sócrates a inteligência precede ainda os encontros; a inteligência provoca-os, suscita-os e organiza-os. O humor de Proust é de outra natureza: o humor judeu contra a ironia grega. É PRECISO SER-SE DOTADO PARA OS SINAIS, ABRIR-SE AO SEU ENCONTRO, ABRIR-SE À SUA VIOLÊNCIA. A inteligência vem sempre depois, é boa quando vem depois, é boa somente quando vem depois. Vimos como esta diferença relativamente ao platonismo engendrava muitas outras diferenças. DEIXA DE HAVER LOGOS, PASSA A HAVER SOMENTE HIERÓGLIFOS. Pensar é, pois, interpretar, pensar é traduzir. As essências são simultaneamente a coisa a traduzir e a própria tradução, o sinal e o sentido. As essências embrulham-se nos sinais para nos forçar a pensar, estendem-se no sentido para ser necessariamente pensadas. O hieróglifo está por todo o lado, e o seu duplo símbolo é o acaso do encontro e a necessidade do pensamento: "fortuito e inevitável"." (Sublinhados, alguns, do tradutor.)

[FIM]

In Urbi et Orbi, nºs 53-59, Fevereiro a Março de 2001

in http://urbi.ubi.pt/

SINAIS (6) - Deleuze

Edmundo Cordeiro

Sexta e esta sim, penúltima parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.

Pode ser que a crítica da filosofia, tal como Proust a empreende, seja eminentemente filosófica. Qual o filósofo que não desejaria esboçar uma imagem do pensamento que não dependesse de uma boa vontade do pensador e de uma decisão premeditada? Quando sonhamos com um pensamento concreto e perigoso, sabemos bem que ele não depende nem de uma decisão nem de um método explícitos, mas do encontro com umaviolência, refractada, que nos conduz até às Essências apesar de nós próprios. Pois, as essências vivem nas zonas obscuras, não nas regiões temperadas do claro e do distinto. As essências estão embrulhadas naquilo que força a pensar, não respondem ao nosso esforço voluntário; não se deixam pensar senão na medida em que sejamos constrangidos a fazê-lo.

[CONTINUA]

SINAIS (5) - Deleuze

Edmundo Cordeiro

Quinta e penúltima parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.

"Voluntário e involuntário não designam faculdades diferentes, mas um exercício diferente das mesmas faculdades. A percepção, a memória, a imaginação, a inteligância,o próprio pensamento, na medida em que se exerçam voluntariamente, têm somente um exercício contingente: assim, o que percepcionamos, poderíamos igualmente recordá-lo, imaginá-lo, concebê-lo; e inversamente. A percepção não nos dá nenhuma verdade profunda, nem a memória voluntária, nem o pensamento voluntário: somente verdades possíveis. Aqui, nada nos força a interpretar alguma coisa, nada nos força a decifrar a natureza de um sinal, nada nos força a mergulhar como "o mergulhador que sonda". Todas as faculdades se exercem harmoniosamente, mas cada qual no lugar de outra, no arbitrário e no abstracto. - Pelo contrário, cada vez que uma faculdade alcance a sua forma involuntária, descobre e atinge o seu próprio limite, eleva-se a um exercício transcendente, compreendendo a sua própria necessidade enquanto potência insubstituível. EM VEZ DE UMA PERCEPÇÃO INDIFERENTE, UMA SENSIBILIDADE QUE APREENDE E RECEBE OS SINAIS: O SINAL É O LIMITE DESSA SENSIBILIDADE, A SUA VOCAÇÃO, O SEU EXERCÍCIO EXTREMO. Em vez de uma inteligência voluntária, de uma memória voluntária, de uma imaginação voluntária, todas estas faculdades surgem sob a sua forma involuntária e transcendente: então, cada qual descobre aquilo em que é a única a poder interpretar, cada qual explica um tipo de sinais que lhe infligem violência em particular. O exercício involuntário é o limite transcendente ou a vocação de cada faculdade. Em vez do pensamento voluntário, tudo o que força a pensar, tudo o que é forçoso pensar, todo o pensamento involuntário que não pode pensar senão a essência. Só a sensibilidade capta o sinal enquanto tal; sós, a inteligência, a memória ou a imaginação explicam o sentido, cada qual segundo uma espécie de sinais; só o pensamento puro descobre a essência, é forçado a pensar a essência como a razão suficiente do sinal e do seu sentido." (Sublinados do tradutor.)

[CONTINUA]

SINAIS (4) - Deleuze

Edmundo Cordeiro

Quarta parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.

"Vamos encontrar a aventura do involuntário ao nível de cada faculdade. De duas maneiras diferentes, os sinais mundanos e os sinais amorosos são interpretados pela inteligência. Mas já não se trata dessa inteligência abstracta e voluntária, que pretende encontrar por si própria verdades lógicas, ter a sua própria ordem e passar ao lados das pressões do exterior. Trata-se de uma inteligência involuntária, que sofre a pressão dos sinais, animando-se somente para os interpretar, para desse modo conjurar o vazio onde sufoca, o sofrimento que a submerge. Em ciência e em filosofia, a inteligência vem sempre antes; mas o que é próprio dos sinais é apelo que eles dirigem à inteligência na medida em que ela vem depois, na medida em que ela deve vir depois. Passa-se o mesmo na memória: os sinais sensíveis forçam-nos a procurar a verdade, e assim mobilizam uma memória involuntária (ou uma imaginação involuntária nascida do desejo). E OS SINAIS DA ARTE FORÇAM-NOS A PENSAR: ELES MOBILIZAM O PENSAMENTO PURO como faculdade das essências. DESENCADEIAM NO PENSAMENTO AQUILO QUE MENOS DEPENDE DA SUA BOA VONTADE: O PRÓPRIO ACTO DE PENSAR. Os sinais mobilizam, constrangem uma faculade: inteligência, memória ou imaginação. Esta faculdade, por sua vez, põe ela própria o pensamento em movimento, força-o a pensar a essência. Sob o incitamento dos sinais da arte, nós aprendemos o que é o pensamento puro como faculdade das essências, e como é que inteligência, a memória ou imaginação a diversificam relativamente às outras espécies de sinais." (Sublinhados do tradutor.)

[CONTINUA]

SINAIS (3) - Deleuze

Edmundo Cordeiro

Terceita parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.

"Pensar é sempre interpretar, quer dizer, explicar, desenvolver, decifrar, traduzir um sinal. Traduzir, decifrar, desenvolver são a forma da criação pura. Assim como não há ideias claras também não há significações explícitas. Só há sentidos implicados nos sinais; e se o pensamento tem o poder de explicar o sinal, de o desenvolver numa Ideia, é porque a Ideia está já no sinal, embrulhada e enrolada, no estado obscuro daquilo que força a pensar. Não procuramos a verdade senão no tempo, constrangidos e forçados. Quem busca a verdade é o ciumento que surpreende um sinal mentiroso no rosto da amada. É o homem sensível, na medida em que encontra a violência de uma impressão. É o leitor, é o ouvinte, na medida em que o obra de arte emite sinais que o forçarão talvez a criar, como o apelo de um génio a outros génios. As comunicações da amizade faladora não são nada face às interpretações silenciosas de um amante. A filosofia, com todo o seu método e toda a sua boa vontade, não é nada face às pressões secretas da obra de arte. A criação parte sempre, como a génese do acto de pensar, dos sinais. A obra de arte nasce dos sinais na mesma medida em que os faz nascer; o criador é como o ciumento, divino intérprete que vigia os sinais em que a verdade se TRAI."

[CONTINUA]

SINAIS (2) - Deleuze

Edmundo Cordeiro

Segunda parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.

"O grande tema do Tempo reencontrado [TEMPO REENCONTRADO é o título do último volume de EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO, de Marcel Proust] é este: a busca da verdade é a aventura própria do involuntário. O pensamento não é nada sem qualquer coisa que force a pensar, que inflija violência ao pensamento. Mais importante que o pensamento, o que "dá que pensar"; mais importante que o filósofo, o poeta. Victor Hugo faz filosofia nos seus primeiros poemas, porque ele "pensa ainda, em vez de se contentar, como a natureza, em dar que pensar". Mas o poeta descobre que o essencial está fora do pensamento, naquilo que força a pensar. O "leitmotiv" do Tempo reencontrado é a palavra FORÇAR: impressões que nos forçam a olhar, encontros que nos forçam a interpretar, expressões que nos forçam a pensar.

(…)

O que força a pensar é o signo. O signo é objecto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele dá que pensar. O acto de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural. É, pelo contrário, a única verdadeira criação. A criação é a génese do acto de pensar no próprio pensamento. Ora esta génese implica qualquer coisa que inflige violência ao pensamento, que o arranca ao seu adormecimento natural, às suas possibilidades unicamente abstractas."

[CONTINUA]

SINAIS (1) - Deleuze

Edmundo Cordeiro

Primeira parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.

"Se o tempo tem muita importância na Recherche [À LA RECHERCHE DU TEMPS PERDU, de Marcel Proust, "Em Busca do Tempo Perdido"], é porque toda a verdade é verdade do tempo. Mas a Recherche é em primeiro lugar busca da verdade. Desse modo se manifesta o alcance "filosófico" da obra de Proust: ela rivaliza com a filosofia. Proust esboça uma imagem do pensamento que se opõe à da filosofia. Ele atira-se ao que é mais essencial numa filosofia clássica de tipo racionalista. Atira-se aos pressupostos dessa filosofia. O filósofo pressupõe de bom grado que o espírito enquanto espírito, que o pensador enquanto pensador, quer o verdadeiro, ama ou deseja o verdadeiro, procura naturalmente o verdadeiro. Outorga-se antecipadamente uma boa vontade de pensar; toda a sua busca é fundada numa "decisão premeditada". Decorre daí o método da filosofia: de um certo ponto de vista, a busca da verdade seria o mais natural e o mais fácil; bastaria uma decisão e um método capaz de vencer as influências exteriores que desviam o pensamento da sua vocação e fazem que tome o falso pelo verdadeiro. Tratar-se-ia de descobrir e de organizar as ideias segundo uma ordem que seria a do pensamento, na forma de significações explícitas ou verdades formuladas que viriam preencher a busca e assegurar o acordo entre os espíritos.

Em filósofo há "amigo". É importante que Proust dirija a mesma crítica à filosofia e à amizade. Os amigos são, um relativamente ao outro, como espíritos de boa vontade que se põem de acordo sobre a significação das coisas e das palavras: comunicam sob o efeito de uma boa vontade comum. A filosofia é como a expressão de um Espírito universal que concorda consigo mesmo para determinar significações explícitas e comunicáveis. A crítica de Proust atinge o essencial: as verdades permanecem arbitrárias e abstractas enquanto se fundarem na boa vontade de pensar. Só o convencional é explícito. É que a filosofia, como a amizade, ignora as zonas obscuras onde se elaboram as forças efectivas que actuam sobre o pensamento, as determinações que nos FORÇAM a pensar. Nunca uma boa vontade, nem um método elaborado, foram suficientes para aprender a pensar; não basta um amigo para nos aproximar do verdadeiro. Os espíritos não comunicam entre si senão o convencional; o espírito não engendra senão o possível. Às verdades da filosofia, falta a necessidade, a marca da necessidade. De facto, a verdade não se entrega, trai-se; não se comunica, interpreta-se; ela não é requerida, é involuntária. […]"

[CONTINUA]