janeiro 24, 2013

A fenda - Gilles Deleuze


                                                                                                                                                                                          © José Pinheiro Neves



"A questão de saber se a fenda pode evitar encarnar-se, efectuar-se no corpo debaixo desta ou de outra forma, não depende evidentemente de regras gerais. A fenda é só uma palavra enquanto o corpo não se tenha comprometido com ela, enquanto o fígado, o cérebro, os órgãos não apresentam estas linhas em que se lê o futuro, e que profetizam por si mesmas. Se se pergunta porque é que a saúde não basta, porque é que a fenda é desejável, talvez seja porque nunca se tinha pensado senão por ela e sobre os seus bordos, e tudo o que foi bom e grande na humanidade entra e sai por ela, entre gentes prontas a destruir-se a si mesmas, e que antes a morte que a saúde que se nos propõe. Há, por acaso, outra saúde, como um corpo que sobrevive o mais longe possível da sua própria cicatriz, como Lowry sonhando com reescrever uma 'Fenda' que acabará bem, não renunciando jamais à ideia de uma reconquista vital ? É verdade que a fenda não importa se não compromete o corpo, não pelo que ele deixa de ser ou valer quando confunde a sua linha com outra linha, no interior do corpo. Não se pode dizer antes, há que arriscar-se no máximo de tempo, não perder de vista a grande saúde. Só se capta a verdade eterna do acontecimento se o acontecimento se inscreve também na carne; mas devemos dobrar cada vez esta efectuação dolorosa com uma contra-efectuação que a limite, a interprete, a transfigure. Há que acompanhar-se a si mesmo, primeiro para sobreviver, quando se morre. A contra-efectuação não é nada, é a do bufão quando opera só e pretende valer pelo que haveria podido suceder. Mas ser o mesmo do que sucede efectivamente, dobrar a efectivação com uma contra-efectuação, a identificação com uma distância, como o actor verdadeiro ou o bailarino, é dar à verdade do acontecimento a sorte única de não confundir-se com a sua inevitável efectuação, à fenda a sorte de sobrevoar o seu campo de superfície incorporal sem deter-se no cruzamento de cada corpo, e a nós próprios o ir mais longe do que o poderíamos supor. Tanto como o acontecimento puro se aprisiona cada vez para sempre na sua efectivação, a contra-efectuação liberta-o, sempre para outras vezes. Não se pode renunciar à esperança de que os efeitos da droga ou do álcool (as suas revelações) possam ser revividas e recuperadas por si mesmas na superfície do mundo, independentemente do uso de substâncias, se as técnicas de alienação social que determinam esta se convertam em meios de exploração revolucionários. Burroughs escreve sobre isto estranhas páginas que atestam esta busca da grande Saúde, o nosso modo próprio de sermos piedosos: 'Pensai que tudo o que pode alcançar-se por vias químicas é acessível por outros caminhos...' Metralhamento da superfície para transformar o apunhalamento dos corpos, oh psicodelia".

Gilles Deleuze, Lógica del sentido, Barcelona, Paidós, 1989, pp. 168-9 (tradução para português de José Pinheiro Neves)