abril 03, 2003

O que é pensar? - Deleuze



"O que é pensar?" Gilles Deleuze

Excertos do livro: Gilles Deleuze, Foucault, 2.ed., São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 124-130.

"Certamente, uma coisa perturba Foucault, e é o pensamento. (...) Pensar é experimentar, é problematizar. O saber, o poder e o si são a tripla raiz de uma problematização do pensamento. E, primeiramente, considerando-se o saber como problema, pensar é ver e é falar, mas pensar se faz no entremeio, no interstício ou na disjunção do ver e do falar. É, a cada vez, inventar o entrelaçamento, lançar uma flecha de um contra o alvo do outro, fazer brilhar um clarão de luz nas palavras, fazer ouvir um grito nas coisas visíveis. Pensar é fazer com que o ver atinja seu limite próprio, e o falar atinja o seu, de tal forma que os dois estejam no limite comum que os relaciona um ao outro separando-os.

(...) em função do poder como problema, pensar é emitir singularidades, é lançar os dados. O que o lance de dados exprime é que pensar vem sempre de fora (esse lado de fora que já era traçado no interstício ou constituía o limite comum.) Pensar não é inato ou adquirido. Não é o exercício inato de uma faculdade, mas também não é um learning que se constitui no mundo exterior. Ao inato e ao adquirido, Artaud opunha o "genital", a genitalidade do pensamento como tal, um pensamento que vem de um lado de fora mais longínquo que todo mundo exterior, portanto mais próximo que todo mundo interior. Devemos chamar de Acaso esse fora? E, realmente, o lance de dados exprime a relação mais simples de forças, ou de poder, aquela relação que se estabelece entre singularidades obtidas ao acaso (os números sobre as faces). (...) O acaso só vale para o primeiro lance; talvez o segundo lance se dê em condições parcialmente determinadas pelo primeiro, como numa cadeia de Markov, uma sucessão de reencadeamentos parciais.

E é isto o lado de fora: a linha que não pára de reencadear as extrações, feitas ao acaso, em mistos de aleatório e de dependência. Pensar assume aqui, então, novas figuras: obter singularidades; reencadear as extrações, os sorteios; e inventar, a cada vez, as séries que vão da vizinhança de uma singularidade à vizinhança de outra. Existem singularidades de todos os tipos, sempre vindas de fora; singularidades de poder, apanhadas em relações de forças; singularidades de resistência, que preparam as mutações; e mesmo singularidades selvagens, que ficam suspensas no lado de fora sem entrar em relações nem se deixar integrar... (e somente aí o "selvagem" adquire sentido, não como experiência, mas como o que ainda não entra na experiência).

Na "Ordem do Discurso" (...) Foucault invoca uma "exterioridade selvagem" e toma o exemplo de Mendel, que constituía objetos biológicos, conceitos e métodos inassimiláveis pela biologia da sua época. Isso não é nem um pouco contraditório com a idéia de que não há experiência selvagem. Não há, porque toda experiência já supõe relações de saber e relações de poder. Ora, precisamente, as singularidades selvagens são repelidas para fora do saber e do poder, nas "margens", de tal forma que a ciência não pode reconhecê-las.

Todas estas determinações do pensamento já são figuras originais do seu ato. E durante muito tempo Foucault não acreditou que pensar pudesse ser outra coisa além disso. Como o pensar poderia inventar uma moral, se o pensamento não pode encontrar nada em si mesmo exceto esse lado de fora do qual provém e que reside nele como "o impensado"? (...) Entretanto, Foucault pressente a emergência de uma estranha e última figura: se o lado de fora, mais longínquo que todo o mundo exterior, é também mais próximo que todo o mundo interior, isso não será sinal de que o pensamento se afeta a si próprio, descobrindo o lado de fora como o seu próprio impensado? (...) Esta afecção de si, esta convenção do longínquo e do próximo, vai assumir importância cada vez maior, constituindo um espaço do lado de dentro, que estará inteiro co-presente no espaço do lado de fora, na linha da dobra. O impensado problemático dá lugar a um ser pensante que se problematiza a si próprio, como sujeito ético (em Artaud é o "genital inato", em Foucault é o encontro de Si e da sexualidade). Pensar é dobrar, é duplicar o fora com um dentro que lhe é coextensivo. A topologia geral do pensamento, que começava já "na vizinhança" das singularidades, se completa agora dobrando-se o lado de fora ao lado de dentro (...)

Se o lado de dentro se constitui pela dobra do de fora, há entre eles uma relação topológica: a relação consigo é homóloga à relação com o lado de fora, e os dois estão em contato, intermediado pelos estratos, que são meios relativamente exteriores (portanto, relativamente interiores). É todo o lado de dentro que se encontra ativamente presente no lado de fora sobre o limite dos estratos. O dentro condensa o passado (longo período), em modos que não são de forma alguma contínuos, mas o confrontam com um futuro que vem de fora, trocam-no e recriam-no. Pensar é se alojar no estrato no presente que serve de limite: o que é que posso ver e o que posso dizer hoje? Mas isso é pensar o passado tal como se condensa no dentro, na relação consigo (há um grego em mim, ou um cristão...). Pensar o passado contra o presente, resistir ao presente, não para um retorno, mas "em favor, espero, de um tempo que virá" (Nietzsche), isto é, tornando o passado ativo e o presente fora, para que surja enfim algo novo, para que pensar, sempre, suceda ao pensamento. O pensamento pensa sua própria história (passado), mas para se libertar do que ele pensa (presente) e poder, enfim, "pensar de outra forma" (futuro).

As três instâncias da topologia são relativamente independentes e estão constantemente em troca mútua. Cabe aos estratos produzir, incessantemente, camadas que fazem ver ou dizer algo de novo. Mas também cabe à relação com o fora colocar novamente em questão as forças estabelecidas e, finalmente, cabe à relação consigo chamar e produzir novos modos de subjetivação. (...)

"Nunca escrevi senão ficções ..." Mas nunca a ficção produziu, tanto, verdade e realidade. Como poderíamos contar a grande ficção de Foucault? O mundo é feito de superfícies superpostas, arquivos ou estratos. Por isso o mundo é saber. Mas os estratos são atravessados por uma fissura central, que reparte de um lado os quadros visuais, de outro, as curvas sonoras; o enunciável e o visível em cada estrato, as duas formas irredutíveis do saber, Luz e Linguagem, dois vastos meios de exterioridade onde se depositam, respectivamente, as visibilidades e os enunciados. Nós estamos, então, presos num duplo movimento. Penetramos de estrato em estrato, de faixa em faixa, atravessamos as superfícies, os quadros e as curvas, acompanhamos a fissura, para tentar atingir um interior do mundo: como diz Melville, procuramos uma câmara central, com medo de que ali não haja ninguém, e a alma humana revele um vazio imenso e aterrorizante (quem pensaria em procurar a vida nos arquivos?). Mas, ao mesmo tempo, tentamos subir para cima dos estratos, para atingir um lado de fora, um elemento atmosférico, uma "substância não estratificada" que pudesse explicar como as duas formas do saber podem se agarrar e se entrelaçar em cada estrato, de uma borda a outra da fissura. Senão, como as duas metades do arquivo poderiam se comunicar, e enunciados aparecerem sob os quadros, e quadros ilustrarem os enunciados?

Esse lado de fora informe é uma batalha, é como uma zona de turbulência e de furacão, onde se agitam pontos singulares, e relações de forças entre esses pontos. Os estratos apenas recolhiam, solidificavam a poeira visual e o eco sonoro de uma batalha que se travava por cima deles. Mas, em cima, as singularidades não têm forma e não são nem corpos visíveis nem pessoas falantes. Entramos no domínio dos duplos incertos e das mortes parciais, das emergências e dos desvanecimentos. É uma microfísica. (...)

A cada estrato atmosférico nessa zona corresponde um diagrama das forças ou das singularidades tomadas nas relações: uma estratégia. Se o estrato são da terra, a estratégia é aérea ou oceânica. Mas cabe à estratégia atualizar-se no estrato, cabe ao diagrama atualizar-se no arquivo, à substância não-estratificada cabe estratificar-se. Atualizar-se é, ao mesmo tempo, integrar-se e diferenciar-se. Atualizar-se é, ao mesmo tempo, integrar-se e diferenciar-se. As relações de forças informes se diferenciam criando duas formas heterogêneas, a das curvas que passam na vizinhança das singularidades (enunciados) e a dos quadros que as repartem em figuras de luz (visibilidades). E as relações de forças se integram ao mesmo tempo, precisamente nas relações formais entre ambas, de um lado a outro da diferenciação. É que as relações de forças ignoravam a fissura, que só começa embaixo, nos estratos. Elas têm capacidade de aprofundar a fissura atualizando-se nos estratos, mas também de saltar por cima, nos dois sentidos, diferenciando-se sem deixar de se integrar.

As forças vêm sempre de fora, de um fora mais longínquo que toda forma de exterioridade. Por isso não há apenas singularidades presas em relações de forças, mas singularidades de resistência, capazes de modificar essas relações, de invertê-las, de mudar o diagrama instável. E existem até singularidades selvagens, não ligadas ainda, na linha do próprio fora e que borbulham justamente em cima da fissura. É uma terrível linha que mescla todos os diagramas, em cima até dos furacões, a linha de Melville, de duas extremidades livres, que envolve toda a embarcação em seus meandros complicados, que passa, quando chega o momento, por horríveis contorções e arrisca-se sempre a arrastar um homem quando corre solta; (...) Mas, por mais terrível que seja essa linha, é uma linha de vida que não se mede mais por relações de forças e que transporta o homem para além do terror. Pois, no local da fissura, a linha forma uma fivela, "centro do ciclone, lá onde é possível viver, ou, mesmo, onde está, por excelência, a Vida." É como se as velocidades aceleradas, de pouca duração, constituíssem "um ser lento" sobre uma duração mais longa. É como uma glândula pineal, que não pára de se reconstituir variando sua direção, traçando um espaço do lado de dentro, mas coextensivo a toda uma linha do lado de fora. O mais longínquo torna-se interno, por uma conversão ao mais próximo: a vida nas dobras. É a câmara central, que não tememos mais que esteja vazia, pois o si nela está situado. Aqui, é tornar-se senhor da sua velocidade, relativamente senhor de suas moléculas e de suas singularidades, nessa zona de subjetivação: a embarcação como interior do exterior".




in Gilles Deleuze, Foucault, 2.ed., São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 124-130.