dezembro 03, 2004

"Existem duas formas de ler um livro..." - Gilles Deleuze

"Existem duas formas de ler um livro: ou o consideramos como uma caixa que remete para o interior, e então vamos procurar os seus significados, e depois, se formos ainda mais perversos ou corrompidos, partimos à procura do significante. E comentaremos, interpretaremos, pediremos explicações, escreveremos o livro do livro, até ao infinito.

Ou então, lemos de outra maneira: consideramos o livro como uma pequena máquina a-significante; o único problema é «será que isto funciona, e como é que isto funciona?». Como é que isto funciona para si? Se não funcionar, se nada acontecer, pegue então noutro livro. Esta outra leitura é uma leitura em intensidade: há qualquer coisa que passa ou que não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. É uma espécie de ligação eléctrica. Conheço pessoas sem cultura, que compreenderam imediatamente o que era o corpo sem orgãos, graças aos seus próprios «hábitos», graças à maneira como fazem um corpo sem orgãos para si.

Esta outra forma de ler opõe-se à primeira, porque relaciona imediatamente um livro com o Defora. Um livro é uma pequena engrenagem numa maquinaria exterior muito mais complexa. Escrever é um fluxo entre outros e que não tem qualquer privilégio relativamente aos outros, e que entra em relações de corrente, de contracorrente, de turbilhão com outros fluxos".

Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, 1990, Les Éditions de Minuit, pp. 17-18.