junho 27, 2003

O novo século será deleuziano? (Nuno Nabais)

O novo século será deleuziano?

Nuno Nabais


QUANDO, no final da década de 60, Deleuze publicou, quase em simultâneo, Espinosa e o Problema da Expressão, Lógica do Sentido e Diferença e Repetição, Michel Foucault podia anunciar que o século XXI seria deleuziano. E grande parte da geração de Maio de 68 levou a sério esse oráculo. Daí que, em 1973, O Anti-Édipo (escrito com Félix Guattari) tivesse surgido como um manual de instruções para o futuro iminente. Essa atmosfera ainda se manteve até 1980 com a publicação de Mille Plateaux. Depois veio uma enorme ressaca. A esquerda ganhou as eleições em França, Foucault morreu, o século XXI demorava a chegar.
Deleuze regressa às suas viagens ao interior da grande biblioteca universal. Ao mesmo tempo que escreve sobre o cinema, e sobre a pintura de Francis Bacon, publica os livros sobre Foucault e sobre Leibniz e ainda O Que É a Filosofia? (de novo com Guattari) e Crítica e Clínica. Prepara uma obra sobre Marx quando morre em 1994.

Entretanto, sobretudo a partir dos EUA, os livros de Deleuze começam a aparecer como um imenso território de experimentação. No mundo da literatura, do teatro, da dança, da pintura, da psicanálise, do urbanismo ou mesmo da biologia, conceitos como «plano de imanência», «repetição para si mesma», «espaço estriado», «dobras orgânicas», «singularidades pré-individuais» passam a funcionar como uma nova linguagem à qual fosse urgente adaptar todos os nossos programas de trabalho. E, curiosamente, é Diferença e Repetição, o livro mais complexo e obscuro de Deleuze (e sua tese de doutoramento), que progressivamente se impõe como a chave de acesso a esse novo «software». Por isso, ao ser lançada a versão portuguesa, não podemos deixar de sentir ser esse o modo mais feliz de marcar o início deste século que Foucault tinha anunciado como deleuziano. Todo o livro funciona em regime de fogo-de-artifício deslumbrante. É uma sucessão infernal de novas figuras conceptuais que se justificam no próprio movimento da sua reformulação permanente. Numa edição de luxo (a tradução é de dois professores brasileiros especialistas na obra, e tem como prefácio um dos melhores textos de José Gil sobre Deleuze), temos agora condições óptimas para medir o grau de verdade daquele oráculo de há trinta anos.



A partir de uma tese paradoxal - o grau máximo da diferença é o que existe na repetição de algo idêntico -, Deleuze começa por fazer explodir a equivalência, aparentemente óbvia, entre pensar e reconhecer algo num conceito. Desde Platão e Aristóteles até às teorias da referência de Russell, Quine ou Kripke, confunde-se o conceito de diferença com uma diferença simplesmente conceptual. Duas coisas só são diferentes se forem expressas por conceitos diferentes. Caso contrário, são repetições de um mesmo conceito. Correlativamente, a repetição só pode ser definida como uma diferença sem conceito. Só há repetição se dois entes ou dois acontecimentos idênticos naquilo que neles é representado forem distintos numericamente no tempo. Deste modo, tanto a diferença como a repetição dependem da identidade de algo - de uma singularidade na coisa, de uma representação num conceito. O acto de pensar seria esse jogo de espelhos entre o conceito e a pluralidade das suas referências, entre o idêntico e a multiplicidade das suas repetições.

O programa de Deleuze é aparentemente simples. Tratar-se-ia apenas de inverter essa subordinação da experiência ao conceito. Bastaria partir de uma diferença que existisse em si mesma, que fosse anterior à própria categoria de identidade, e dela derivar as condições de possibilidade da experiência do mesmo e, portanto, da própria generalidade na representação. Mas tal passa por reescrever quatro domínios fundamentais da filosofia: a) a teoria da Natureza; b) a teoria do conhecimento; c) a ontologia do inactual; d) a fenomenologia do tempo. De facto: a) para poder colocar a diferença em si mesma como instância originária - não apenas do conhecimento como do mundo - é necessário mostrar que ela existe já na Natureza como fundamento da repetição dos acontecimentos (causa da identidade e regularidade da lei e não sua consequência); b) conhecer passa então a ser compreendido como uma actividade de invenção de problemas, os quais são sempre já constituídos por séries divergentes de soluções; c) a passagem à existência de algo puramente inactual no interior de uma espécie deve ter a condição não da efectivação de um possível genérico mas da actualização de um virtual que se define pela sua dinâmica diferencial; d) enfim, repetição e diferença têm de ser reconhecidas como dados originários da experiência do tempo, onde a própria forma do antes/depois encontra a sua possibilidade. Quatro tarefas enormes. Compreende-se que Diferença e Repetição tenha aparecido como o anúncio de um novo continente filosófico. Trinta anos depois, estaremos preparados para saber se no mapa deste novo século esse continente sempre aparece desenhado? 

Nuno Nabais