janeiro 23, 2005

"A escrita literária não é de forma alguma a expressão do eu..." - Mário Perniola

"A escrita literária não é de forma alguma a expressão do eu, mas sim a perda da individualidade, o apagamento do sujeito, o ingresso num espaço enigmático. Daí a sua afinidade com a morte, que é justamente o alheamento radical, a suspensão de qualquer equivalência, a inconveniência máxima. O enigma da palavra literária consiste no facto de conter dois movimentos opostos: o primeiro dirige-se para a dissimulação e para o trânsito, o segundo para a auto-referência, para o colocar-se a si próprio como coisa neutra e irredutível".

Mário Perniola, Enigmas. O momento egípcio na sociedade e na arte, Lisboa, Bertrand, 1994, pp.117-118.

janeiro 20, 2005

"Sobre o imaginário" de Josimey Costa da Silva

http://www.eca.usp.br/nucleos/filocom/josimey.doc
15 de Outubro de 2003

Sobre o imaginário

Josimey Costa da Silva

Texto de referência:
Deleuze, Gilles. Dúvidas sobre o imaginário in Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

Imagem, imaginação e imaginário radicam do latim imago -ginis. A palavra imagem significa a representação de um objeto ou a reprodução mental de uma sensação na ausência da causa que a produziu. Essa representação mental, consciente ou não, é formada a partir de vivências, lembranças e percepções passadas e passível de ser modificada por novas experiências.
Já imaginário é o vocábulo fundamental que corresponde à imaginação, como sua função e produto. Composto de imagens mentais, é definido a partir de muitas óticas diferentes, até conflitantes. Alguns, como Bachelard, consideram que, graças ao imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, evasiva. Ela é no psiquismo humano a própria experiência da abertura, a própria experiência da novidade. Le Goff pondera que o imaginário está no campo das representações, mas como uma tradução não reprodutora, e sim, criadora, poética. É parte da representação, que é intelectual, mas a ultrapassa.
Para outros, como Durand, o imaginário é o “conjunto das imagens e das relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens”, o grande e fundamental denominador onde se encaixam todos os procedimentos do pensamento humano (DURAND, 1997: 14). Parecendo partir de uma concepção simbólica da imaginação, que postula o semantismo das imagens, que conteriam materialmente, de alguma forma, o seu sentido, Durand se contrapõe a Lacan, para quem o imaginário seria um aspecto fundamental da construção da subjetividade. O imaginário corresponderia à fase do espelho, ao reconhecimento de si que a criança pequena opera ao descobrir o seu reflexo. Ao mesmo tempo em que a imagem no espelho afirma a realidade do eu, é insinuado também o seu caráter de ilusão, já que é apenas um reflexo. Para que a criança alcance o nível da realidade, deve deixar o modo imaginário da visão de si e dos outros e utilizar o modo simbólico. Assim, para Lacan, o simbólico seria coletivo e cultural; o imaginário seria individual e ilusório.
Durand assinala o dinamismo do imaginário, conferindo-lhe uma realidade e uma essência própria. Em princípio, o pensamento lógico não está separado da imagem. A imagem seria portadora de um sentido cativo da significação imaginária, um sentido figurado, consitutindo um signo intrinsecamente motivado, ou seja: um símbolo. O simbolismo é cronológica e ontologicamente anterior a qualquer significância audio-visual; a sua estruturação está na raiz de qualquer pensamento. E mais: “o imaginário não só se manifestou como atividade que transforma o mundo, como imaginação criadora, mas sobretudo como transformação eufêmica do mundo, como intellectus sanctus, como ordenança do ser às ordens do melhor” (DURAND, 1997: 432).
Com um desvio do curso dessas reflexões, Deleuze lança suas dúvidas sobre o imaginário. É útil considerar, inicialmente, suas idéias a respeito da imagem no cinema, a imagem-movimento. Para ele, as coisas mesmas são imagens e estas não estão no cérebro; o cérebro é uma imagem entre outras. Imagens, coisas e movimento não se diferenciam.
Remetendo-se a Bergson, ele fala do cinema como produtor de uma identidade entre movimento e tempo, esse tempo como sendo a coexistência de todos os níveis de duração. É o tempo do cinema moderno que, rompendo com a narração, “expõe situações sensório-motoras” (DELEUZE, 1992: 68). Estas situações estão calcadas sobre a imagem, que está permanentemente em relação com outras imagens.
No cinema, a imagem comporia, mais do que algo visível, algo legível, assim como um diagrama, porque há o que ver na imagem e o que ver por trás da imagem. A imagem torna-se, então, pensamento. O olho faz parte da imagem, é a visibilidade dela, e o cinema é produtor de realidade. Aqui, ele compara a narração no cinema com o imaginário, os dois aparecendo como uma conseqüência muito indireta, que decorre do movimento e do tempo, não o inverso.
Tal relação faz mais clara posição de Deleuze sobre o imaginário, quando ele diz que essa é uma noção imprecisa (DELEUZE, 1992: 85). Ele percebe uma relação entre imagem e conceito quando sugere que as idéias se realizam ora em um, ora em outro. O signo é que efetua a idéia, e as imagens no cinema são, para ele, signos que não se definem por representar universalmente, mas pelas suas singularidades internas. Neste ponto, mais uma vez, sua posição parece distanciar-se da opção de Durand.
Quando se refere ao imaginário, Deleuze recusa atribuir-lhe irrealidade, mas o vê como um conjunto de trocas entre uma imagem real e uma virtual, como uma indiscernibilidade entre o real e o irreal, o que coincide com a sua noção do falso. A ultrapassagem do imaginário se daria em direção a um tempo puro, dissociado do movimento, só possível como imagem-cristal, imagem-tempo. O cinema atinge a imagem tempo. O imaginário seria a potência do falso; o tempo substituiria o verdadeiro pela potência do devir.
Bibliografia consultada

Deleuze, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

Durand, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

Le Goff, Jacques. O imaginário medieval. Portugal: Editorial Estampa,
1994.

Morin, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Relógio D’água/Grande Plano, 1997.