janeiro 29, 2006

Recensão de "Platon et Le Simulacre" de Gilles Deleuze ( Luis de Barreiros Tavares)

Recensão de Platon et Le Simulacre de Gilles Deleuze

Luis de Barreiros Tavares


«Com efeito, qual é a árvore verdadeira? Aquela que é vista quando estamos parados e podemos detalhar visualmente cada ramo, cada folha, ou aquela de que nos apercebemos no desfilar estroboscópico do pára-brisas da viatura, ou ainda na estranha lucarna televisiva?»

Paul Virilio, A velocidade de Libertação, Lisboa, Trad. de Edmundo Cordeiro, Rel.D'água, 2000, p. 123.

1.Se neste texto Deleuze pretende demonstrar que Platão, na sua obra «O Sofista», entre outras, anuncia a possibilidade da inversão do platonismo, esse anúncio, ainda segundo o pensador francês, não deixa, no entanto, de ser a advertência para o risco que se pode correr de, na própria "Teoria das Ideias", se proceder a essa inversão. Todavia, é necessário passar por esse risco, para que, precisamente, se salvaguarde o pensamento platónico. Mas porque é que Platão procede à inversão pontual do seu pensamento? Porque é no seio da sua doutrina que se encontra a possibilidade do princípio «desviante» da sua inversão. A condição de possibilidade, em terminologia kantiana, da inversão se dar. Trata-se, por conseguinte, de passar brevemente pela inversão, para retornar àquilo que o autor defende: «fazer triunfar os ícones sobre os simulacros». Portanto, se Platão é o primeiro a «antever» a inversão do platonismo (« Et que Platon le premier indiquât cette direction du renversement du platonisme?», é com o objéctivo de, com a explicitação da sua possibilidade, passar por essa inversão, sem abrir caminho por ela, mas dela se retirar, evitando-a. Quer dizer, usa a partir dessa breve mas profunda incursão metodológica (divisão) , uma maneira, dir-se-ia, de inverter essa inversão. Negar de vez essa possibilidade. Mas não se trata aqui de uma espécie de Aufhebung hegeliana: a negação que supera conservando. Dir-se-ia, não sem ironia (« ne fallait-il pas pousser l’ironie jusque-là?»), que Platão como que «simula» aceder à inversão (à iminência dos simulacros ). Nesse sentido, ele usa o próprio simulacro para dele se libertar. Para o matar de raiz de cada vez que ele se insurja. Mas, ironia das ironias, deixa em aberto essa «potência positiva » (expressão deleuziana) do simulacro na sua condição imprevisível do dissemelhante: « le simulacre n’est pas une copie dégradée, il recéle une puissance positive qui nie et l’original et la copie, et le modèle et la reproduction.»p302. E ainda: «Il ne suffit même pas d’invoquer un modèle de l’Autre, car aucun modèle ne resiste au vertige du simulacre». O simulacro como que se dissimula no seu processo estranho, porque díspare, de desencadeamento de dissemelhança(s). Os simulacros são «sempre-já» outros. E o “outro” do simulacro – embora este não se diga do modelo do Outro - é o díspare na sua dis-simulação.

2.« Distinguer la «chose» même et ses images, l’original et la copie, le modèle et le simulacre. Mais toutes ces expressios se valent-elles?» Não. Do ponto de vista de Deleuze, esse é o objéctivo genérico da "Teoria das Ideias" . Todavia : « le projet platonicien n’apparaît vraiment que si nous nous reportons à la méthode de la division.» (p.292). A divisão constitui o método de filtragem, de triagem . Como que a segunda passagem por um crivo, que dissipa de vez o risco de confusão simulacros-imagens-modelos. Os falsos pretendentes seriam os que iludiriam a ilusão - passe a expressão - da semelhança imagem-modelo. Esta semelhança imagem-modelo seria a instância ilusória aceite por Platão; seria a instância da ilusão legítima; seria a ilusão em ordem à semelhança, a qual se manteria fiel ao primado do Mesmo como Modelo. Mas porque é que os simulacros constituiam uma ameaça aos verdadeiros pretendentes, quando, afinal, eles não passavam de uma dupla ilusão, acabando esta por ser inofensiva? Com efeito, a perigosidade dos simulacros parecia não existir propriamente, pois seria uma ilusão ilusória . Quanto muito, o perigo só existiria porque os falsos pretendentes estariam fora da rivalidade (amphisbetesis): « une dialectique des rivaux ou des prétendants (os verdadeiros concorrentes da semelhança (ressemblance)). Os simulacros ou falsos pretendentes seriam então caminhos que não conduziam a parte nenhuma . Ou, quiçá, talvez por isso mesmo, a lugares perigosos. Ao lugar, entre outros, onde o falso pretendente se faria passar pelo verdadeiro pretendente. Daí a necessidade de triar pretensões: «trier les prétentions , distinguer le vrai prétendant des faux (pseudos)» p.293. Porque, de facto, o simulacro é da ordem da dissemelhança interna. Deste modo, abria-se a possibilidade do próprio modelo deixar de fazer sentido e ser substítuido pelo simulacro. Veja-se o exemplo do sofista(«Le sophiste lui-même est l’être du simulacre(…)»p.295) confundindo-se com Sócrates enquanto «encarnação do modelo»: «La définition finale du sophiste nous méne au point où nous ne pouvons plus le distinguer de Socrate lui-même: l’ironiste opérant en privé par arguments brefs». p295(sublinhados meus).

3. Assim, afiguram-se como que duas existências. Ou melhor, duas aparências ideais. E é essa aparente co-existência identitária que produz o efeito paradoxal de algo idêntico e uno, por um lado, e diverso e díspare, por outro, simul-taneamente. E aqui entram os falsos pretendentes. Porquê? Porque, com efeito, não se trata tanto da relação Modelo-cópia , Essência-Aparência: «Le probléme ne concerne plus la distintion Essence-Apparence, ou Modèle-copie. Cette distintion tout entiére opére dans le monde de représentation; il s’agit de mettre la subversion dans ce monde…»p.299. É por uma perversão e subversão, desvio de rota, que se insinuam os simulacros. Como que um movimento de aparente ultrapassamento do binómio cópia-modelo. O simulacro, ao mesmo tempo que operava uma cisão na relação ícone-modelo, operava uma fusão dos dois um no outro. Ao ponto de pôr em causa a legitimidade do ícone e do original:« Platon dans l’eclair d’un instant découvre qu’il (o simulacro) n’est pas simplement une fausse copie, mais qu’il met en question les notions mêmes de copie… et de modèle»p.295.O ultrapassamento por «entre» ( dissemelhança interna) o binómio cópia-modelo, aparência-essência é o modo como o simulacro se insurge, se insinua. E é em relação a esta ameaça de subversão que é necessário proceder, segundo Deleuze, ao método da divisão (division). Triagem para distinguir os verdadeiros dos falsos pretendentes. Os falsos pretendentes seriam como que caminhos a não seguir; a divisar. Pelo simples facto de não caberem na lógica da semelhança (ressemblance) imagem-modelo, mas sim na ordem da dissemelhança (dissemblance). Perdas de tempo, perigosas por isso mesmo. E que seria preciso detectar a todo e qualquer momento. Seria um risco acrescido na procura excessiva da Ideia ou no repouso indiferente na imagem? Uma outra imagem? De facto o simulacro (phantasma) é de uma outra ordem de imagens. Estas incursões nos discursos e imagens-simulacro seriam manobras táticas para neles não se cair como presa: detectar aquilo que de maneira nenhuma é, fazendo-se passar por ser. Ora cópias, ora modelos, ora nem uma coisa nem outra: simulacros.

4.O simulacro encontrar-se-ia no meio dos extremos (modelo e cópia), percorrendo essa distância «entre» e, por outro lado, estaria paradoxalmente nos dois extremos. Ora, assim sendo, na medida em que os extremos se encontram (se tocam), passa cada um para o lado do outro e, deste modo, já não se trata de extremos que se tocam, mas sim de séries que se cruzam. Porque as séries internas extravasam as delimitações dos extremos, criando-se, assim séries externas , não deixando umas e outras (as internas e as externas ) de se percorrerem mutuamente, sendo infinita e multiplamente variáveis nas suas combinatórias: « Entre ces séries de base se produit une sort de résonance interne; cette résonance induit un mouvement forcé, qui déborde les séries elles-mêmes» p.301. (sublinhados meus). Donde a necessidade do requestionamento dos conceitos de exterioridade e de interioridade. Pode-se compreender a partir daqui a razão pela qual Deleuze virá mais tarde a abandonar o conceito de simulacro, avançando com o de «Devires». O conceito de «devires» virá possivelmente suplantar o impasse deixado pelo de «simulacro». Esse impasse consiste precisamente na herança platónica que não concedeu a reflexão suficiente acerca do simulacro, deixando-o na esfera da diferença radicada na dualidade latente do uno e do múltiplo e no permanente remeter ao primado do Idêntico. Pois conforme escreve Zourabichvili, F.; Le Vocabulaire de Deleuze;Paris;Ellipses,p.84: « Il est significatif (…)que le simulacre ait été complètement abandodonné aprés Logique du Sens (…). Deux raisons peuvent être avancées: il se prêtait à trop d’équivoques, mais surtout il participait encore d’une exposition négative de l’«anarchie couronnée», toute tournée vers la démonstration critique du caractère produit ou dérivé de l’identité. Vacante, la place est investie par le concept de devenirs.» (sublinhados meus). Não abrindo caminho às «multiplicidades »(conceito tão caro a Deleuze). Bem como ao conceito de «Virtual». Porquanto, os simulacros, hoje, com o desenvolvimento da técnica e das novas tecnologias, dimensionam-se em esferas diferentes dos contextos da época de Platão.

5.Ora, a motivação que constitui a inversão do platonismo é, justamente, essa delimitação do campo de acção do sofista. Uma caça ao Sofista. A inversão, no sentido de «l’abolition du monde des essences et des apparences», não passaria dum platonismo voltado do avesso e ponto. O que importa é manter a motivação (motivation) da inversão mediante o método da divisão. E não estabelecer a inversão por ela própria : «Renverser le platonisme doit signifier au contraire mettre au jour cette motivation,«traquer» cette motivation – comme Platon traque le sofiste»p.292. Mas Platão volta ao primado do Mesmo após esse périplo (a inversão pelo método da divisão), ao qual, por sua vez, é sempre possível retornar (eterno retorno?), para garantir sempre o objéctivo da afirmação do Mesmo, do qual, por seu turno se dizem os verdadeiros pretendentes. Pois : «Le modèle platonicien c’est le Même». Ou seja, pelo método da divisão, procede-se à experiência tática da inversão com o objéctivo de, através dessa triagem e desse «traquer le sofiste», garantir a prevalência dos ícones sobre os simulacros e, por assim dizer, retornar à ordem da semelhança cópia-modelo, da cópia como« le semblable: le prétendant qui reçoit en second» e se diz do Mesmo.

TEXTO DE

Luis Manuel Almeida de Barreiros Tavares



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janeiro 26, 2006

FILOSOFIA E NÃO FILOSOFIA : A IMAGEM CINEMATOGRÁFICA — breve apresentação da forma do trabalho deleuziano. (Edmundo Cordeiro)

FILOSOFIA E NÃO FILOSOFIA : A IMAGEM CINEMATOGRÁFICA — breve apresentação da forma do trabalho deleuziano. (Edmundo Cordeiro)

(ainda sem as notas)

Em L’Image-mouvement e L’Image-temps , obras sobre o cinema, sobre as suas imagens — mas também, sobre o movimento e o tempo —, Gilles Deleuze serve-se sobretudo de dois autores, Bergson (1859-1941) e Peirce (1839-1914). Do primeiro, Deleuze retira consequências relativamente ao cinema, consequências essas que decorrem da teorização bergsoniana acerca do movimento e das imagens, prolongando, se assim se pode dizer, a sua reflexão; o segundo, Peirce, serve a Deleuze para a classificação dos signos específicos de cada tipo de imagem, signos esses que decorrem — uma vez que os signos remetem para uma assinatura, como refere Deleuze — do trabalho de grandes criadores, de grande realizadores. Bergson vai pensar a conjunção do movimento e da imagem, uma imagem-movimento. E é justamente isso que Deleuze retoma, mas agora procurando fazer a conjugação da imagem-movimento com a imagem cinematográfica: Se, para Bergson, o problema era estritamente filosófico, consistindo numa tentativa de fornecer uma metafísica que correspondesse à concepção da ciência moderna acerca do movimento — os momentos sucessivos têm todos a mesma importância —, para Deleuze, em contrapartida, o problema já não é somente filosófico: Deleuze vê o cinema não como «o aparelho mais aperfeiçoado da mais velha ilusão», conforme a crítica de Bergson, mas como «um órgão que aperfeiçoa uma nova realidade .» É que, para Deleuze, os conceitos que são próprios do cinema não se esgotam na sua definição técnica. O cinema, mais do que servir para pensar, pensa ele próprio, é também um órgão de pensamento (e, desse modo, um órgão que cria realidade — «o cinema é produtor de realidade .» L’image-temps termina com estas palavras: «O cinema é uma nova prática das imagens e dos signos, da qual a filosofia deve fazer a teoria enquanto prática conceptual. Pois nenhuma determinação técnica, nem aplicada (psicanálise, linguística), nem reflexiva, é o bastante para constituir os conceitos próprios do cinema. » Para Deleuze isto é o mesmo que dizer que a filosofia deve encontrar-se com essa prática conceptual que é própria do cinema. O que exclui, segundo a sua perspectiva, a "reflexão" ou a "representação" (não se trata de "reflectir" o cinema na filosofia, não se trata de fornecer uma "representação" filosófica do cinema). Trata-se, na sequência disto, de pensar as imagens do cinema e os seus poderes, pensar com essas imagens, em correspondência com alguns problemas que a filosofia coloca ou cria . Os problemas que a filosofia coloca ou cria: justamente, Deleuze inicia L’Image-mouvement com um comentário das teses do filósofo francês (Bergson) sobre o movimento. A razão disso é dada por Deleuze logo no "prólogo": «Apesar da crítica demasiado sumária que Bergson fará mais tarde [posteriormente a Matière et mémoire, 1896] ao cinema, nada pode impedir a conjunção da imagem-movimento, tal como ele a considera, com a imagem cinematográfica. » Aí temos uma correspondência: o problema filosófico do movimento (e do tempo) e a imagem cinematográfica. A Imagem-movimento, pensada por Bergson, não é a imagem do movimento (um corte ou uma sucessão de cortes), nem é o movimento da imagem (uma animação artificial, técnica, desses cortes), mas é, antes, tudo junto, imagem-movimento . E para Deleuze o cinema cria o auto-movimento da imagem, é determinado, em primeiro lugar, pela imagem-movimento . Esta ligação do cinema à imagem-movimento vai no entanto ser quebrada em favor de uma imagem-tempo, uma apresentação directa do tempo — a imagem-movimento apresentaria o tempo também, naturalmente, mas indirectamente — (e temos aqui uma nova correspondência, no sentido atrás mencionado). Essa imagem-tempo cinematográfica é pensada em L’Image-temps. Tudo isso tem que ver com as transformações que o cinema sofreu, igualmente com as transformações do mundo, mas também, e sobretudo no entender de Deleuze, com aquilo que com o cinema foi feito por intermédio do trabalho dos seus criadores. Esta passagem de uma imagem-movimento a uma imagem-tempo tem igualmente como substrato uma ideia bergsoniana: a de "totalidade aberta". Uma das suas teses sobre o movimento, em L’Évolution créatrice, 1907, dizia que o movimento (o deslocamento no espaço) expressa uma transformação no todo (uma mudança qualitativa na duração [durée]) e, por outro lado, que esse todo não pode ser concebido enquanto um todo fechado, mas aberto, em constante mudança, o que supunha, no entender de Deleuze, «(…) a existência de relações comensuráveis ou cortes racionais entre imagens, na própria imagem e entre a imagem e o todo .» Mas há que introduzir outro factor: o da evolução do cinema — por conseguinte, o da evolução das suas imagens. «Houve esse modelo, mas há e haverá tantos modelos quantos aqueles que ele [o cinema] inventar .» É o que se passa com o cinema moderno: ele «(…) mostra toda uma série de cortes irracionais, relações incomensuráveis entre as imagens.(…) o essencial já não é a imagem-movimento, mas antes a imagem-tempo. Deste ponto de vista, o modelo de uma totalidade aberta que decorre do movimento deixa de ter validade: deixa de haver totalização — nem interiorização num todo, nem exteriorização do todo. Deixa de haver encadeamento de imagens por intermédio de cortes racionais, passa a haver re-encadeamentos de imagens por intermédio de cortes irracionais (Resnais, Godard) .»

janeiro 23, 2006

Deleuze. A Arte entre Crítica e Clínica

II Colóquio Internacional de Filosofia e Ciências do Homem

Deleuze. A Arte entre Crítica e Clínica

24 de Janeiro 2006

Instituto Franco Português
Av. Luís Bivar, nº 91, 1000 Lisboa (telf: 21.3111400)

Organização

Centro de Filosofia das Ciências da Univ. Lisboa

Instituto Franco Português de Lisboa

Comissão Científica
Nuno Nabais mail
François Zourabichvili


Programa

9.30 –
Abertura: Philippe Relliquet (IFP), François Zourabichvili, Nuno Nabais (CFCUL)
10h
David Lapoujade (Sorbonne/Paris I) – Deleuze : d’un concept à l’autre.
10.45h

Sousa Dias (Escola de Artes Soares dos Reis, Porto) – “Partir, evadir-se, traçar uma linha ...”. Deleuze e a Literatura
11.30h

Edmundo Cordeiro (Lusófona, Lisboa) – O Cinema entre Crítica e Clínica.
12.15h

José Luís Pardo (Complutense, Madrid) – Lógos y Diferencia: el Modelo Artístico

Almoço

15h

Peter Pál Pelbart (PUC, S.Paulo) – Literatura e Loucura: da Exterioridade à Imanência.
15.45h

Catarina Pombo (Doutoranda, Paris VIII) – A Literatura Impossível: Bene, Melville e Beckett

16.30h

Eduardo Pellejero (Doutorando, Universidade de Lisboa) – A Realidade Política da Expressão. Literatura e Fabulação

17.15h
François Zourabichvili (Paul Valéry/Montpellier) – Kant avec Masoch

19h
Projecção do filme Abécédaire de Deleuze – Extraits sur l’Art.
Jantar

22h
Diogo Dória lê Deleuze, acompanhado pela manipulação sonora de Bejamin Brejon (Mécanosphère) e Miguel Cardoso (Soopa)