março 20, 2005

Resumo de José Gil, “Prefácio. O Alfabeto do Pensamento”, in Gilles Deleuze, Diferença e repetição, Lisboa, Relógio d’água, 2000, pp. 9-29

Resumo de José Gil, “Prefácio. O Alfabeto do Pensamento”, in Gilles Deleuze, Diferença e repetição, Lisboa, Relógio d’água, 2000, pp. 9-29


Uma boa metáfora para se compreender o pensamento Deleuzeano parece ser o alfabeto. Todos sabemos que “o alfabeto compõe-se de “letras”. Aprendemos a “ler” e a “escrever” (isto é, a pensar), combinando-as para formar palavras, depois frases (ou seja, para articular uma questão e construir um problema). As mesmas letras não se encontram, pois, em toda a parte, em todas as palavras; mas quanto mais complexo é o problema, mais numerosas são as letras necessárias para o elaborar. Estas constituem a possibilidade de inteligibilidade da Ideia, são os elementos articuláveis pelos dados actuais de cada problema em cada domínio particular; e, reciprocamente, permitem articular num ou mais problemas (criando uma rede problemática) os dados específicos deste ou daquele domínio. Com elas podemos pensar o caos na pintura de Bacon, o devir-mulher num rito grego, o sistema buraco negro/parede branca da “facialidade” (visageité), a lógica do desejo esquizofrénico ou o pensamento de François Châtelet” (Gil, 2002: 26).
Para se entender esta comparação talvez faça sentido apresentar alguns exemplos.
1 - O que são as Ideias? Compõem-se de “elementos diferenciais, de relações diferenciais entre esses elementos (problemas) e de singularidades correspondentes a essas ligações” (Deleuze, 2000: 441). Temos os elementos, as relações entre esses elementos e as singularidades únicas produzidas pela agregação relacional dos elementos. Todas as ideias emitem problemas na medida em que “o ‘problemático’ é um estado do mundo
No fundo, trata-se de evitar a armadilha do pensamento representativ o, um pensamento que se agrupa sob “as categorias de identidade e unidade” (Gil, 2000: 11), um pensamento universal que se oporia à doxa, ao pensamento comum. Contudo, este pensamento partilha do essencial da doxa: “sem dúvida a filosofia recusa toda a doxa particular; (…) Mas, da doxa, ela conserva o essencial, isto é, a forma; do senso-comum, ela conserva o essencial, isto é, o elemento; e, da recognição, ela conserva o essencial, isto é, o modelo (concordância das faculdades, fundada no sujeito pensante tido como universal e exercendo-se sobre um objecto qualquer)” (Deleuze, 2000: 233)[1].
2 - Como entender estas singularidades? Tratam-se de pontos que marcam que se distinguem de outros pontos que apenas constituem a ligação a outras singularidades (pontos ordinários). A combinação destes pontos está na base das séries, das multiplicidades[2]. Estas “divergem, convergem, repercutem-se entre si graças a elementos que as põem em comunicação (o ‘percursor sombrio” de Diferença e Repetição”; o ‘ponto aleatório’ ou a ‘casa vazia’ de Logique du Sens); deste modo, os elementos diferenciais comunicam entre si (sem formarem uma unidade conceptual). Nas proximidades dos pontos singulares, estendem-se zonas de indiscernibilidade que podem invadir outras zonas de indiscernibilidade de outros pontos singulares (zonas de devir-animal, devir-mulher, etc., segundo O Anti-Édipo)” (Gil, 2000: 27).
3 - As singularidades não podem ser percepcionadas como indivíduos. “O indivíduo e a pessoas engendram-se como unidades ‘molares’ (Anti-Édipo e Mille Plateaux) a partir dos elementos ‘moleculares’ que povoam o campo das singularidades” (uma emoção ou uma visão que surgem num campo pré-individual) (Gil, 2000: 27).
4 - E como descrever este campo povoado de singularidades? Neste campo circulam intensidades pois trata-se de um campo virtual que está sempre a ser objecto de actualização através das individuações, da passagem das molé culas a molares: “o movimento de actualização define, de modo geral, a individuação como um movimento de passagem do virtual ao actual, da Ideia às suas problemáticas particulares, do Acontecimento aos estados de coisas — inversamente ao movimento que vai das unidades molares ao plano da consistência” (Gil, 2000: 27).
O alfabeto não se confunde nem com uma gramática (é algo não actualizado, uma potencialidade virtual), nem com um modelo ( é algo móvel, ), nem com um código (é apenas um meio para aprender a pensar). Por isso, “não só permite pensar as singularidades como continua também o pensamento de autores a que se aplica (…). Ou então, no caso de se aplicar simplesmente a fenómenos (sociais, políticos, linguísticos, estéticos), o alfabeto traça tão estreitamente a sua microdinâmica que dele podemos retirar naturalmente novos conceitos, como se estes decorressem directamente do movimento analisado” (Gil, 2000: 28).
[1] Um pouco a crítica de Simmel a Kant. Ver “O problema da sociologia” de G. Simmel.
[2] Parecem existir aqui afinidades entre Serres e Deleuze. Ver o seu texto sobre a rede tabular (“Hermes I, La communication”).