dezembro 08, 2003

Na morte de Deleuze

Na morte de Deleuze


José Bragança de Miranda

A filosofia já não é o que era. Outrora amante do saber, e por esse amor crítica e até revolucionária, tornou-se recitação de si própria como história da filosofia. E, quando isto não lhe bastava, para sobreviver a si própria, foi em busca do que lhe faltava à ciência, à linguística, à lógica ou à pragmática. A tal ponto que, aqueles que a amavam foram obrigados a destruí-la, como foi o caso de Nietzsche, de Heidegger ou de Foucault. Gilles Deleuze e toda a sua obra introduziram uma dissônancia neste quadro. A sua vida filosófica foi durante anos uma vida da filosofia, a tal ponto que a certo momento me parecia difícil distinguir a obra e o homem. As duas projectavam uma mesma sombra, inquietantemente estranha, que o impelia a evitar os compromissos do pensar com o tempo, a negociação com os poderes, ou o diálogo sobre as ideias. No que é talvez o seu último texto, publicado na revista Philosophie de Setembro deste ano, vem o título «A imanência, uma vida...». Pouco antes antes de se precipitar na morte, voluntariamente, fala de vida, de uma «vida de pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, pois que apenas o sujeito que a incarnava no meio das coisas a tornava boa ou má». O acontecimento da morte em vida, que a doença sempre é, não era aceitável para Deleuze. O acontecimento que o singularizava era a filosofia, e não poder prossegui-la devido à doença, não poder continuar através da filosofia, leva ao fim a vida de Deleuze. Não se podia pedir-lhe, então, que continuasse mais longe, depois de tudo estar consumado. E estava, de facto.

http://pwp.netcabo.pt/jbmiranda/jbm_deleuze.htm

Filosofia e não filosofia: a imagem cinematográfica - Edmundo Cordeiro

Filosofia e não filosofia: a imagem cinematográfica
— breve apresentação da forma do trabalho deleuziano.

(Edmundo Cordeiro)


(ainda sem as notas)



Em L’Image-mouvement e L’Image-temps , obras sobre o cinema, sobre as suas imagens — mas também, sobre o movimento e o tempo —, Gilles Deleuze serve-se sobretudo de dois autores, Bergson (1859-1941) e Peirce (1839-1914). Do primeiro, Deleuze retira consequências relativamente ao cinema, consequências essas que decorrem da teorização bergsoniana acerca do movimento e das imagens, prolongando, se assim se pode dizer, a sua reflexão; o segundo, Peirce, serve a Deleuze para a classificação dos signos específicos de cada tipo de imagem, signos esses que decorrem — uma vez que os signos remetem para uma assinatura, como refere Deleuze — do trabalho de grandes criadores, de grande realizadores. Bergson vai pensar a conjunção do movimento e da imagem, uma imagem-movimento. E é justamente isso que Deleuze retoma, mas agora procurando fazer a conjugação da imagem-movimento com a imagem cinematográfica: Se, para Bergson, o problema era estritamente filosófico, consistindo numa tentativa de fornecer uma metafísica que correspondesse à concepção da ciência moderna acerca do movimento — os momentos sucessivos têm todos a mesma importância —, para Deleuze, em contrapartida, o problema já não é somente filosófico: Deleuze vê o cinema não como «o aparelho mais aperfeiçoado da mais velha ilusão», conforme a crítica de Bergson, mas como «um órgão que aperfeiçoa uma nova realidade .» É que, para Deleuze, os conceitos que são próprios do cinema não se esgotam na sua definição técnica. O cinema, mais do que servir para pensar, pensa ele próprio, é também um órgão de pensamento (e, desse modo, um órgão que cria realidade — «o cinema é produtor de realidade .» L’image-temps termina com estas palavras: «O cinema é uma nova prática das imagens e dos signos, da qual a filosofia deve fazer a teoria enquanto prática conceptual. Pois nenhuma determinação técnica, nem aplicada (psicanálise, linguística), nem reflexiva, é o bastante para constituir os conceitos próprios do cinema. » Para Deleuze isto é o mesmo que dizer que a filosofia deve encontrar-se com essa prática conceptual que é própria do cinema. O que exclui, segundo a sua perspectiva, a "reflexão" ou a "representação" (não se trata de "reflectir" o cinema na filosofia, não se trata de fornecer uma "representação" filosófica do cinema). Trata-se, na sequência disto, de pensar as imagens do cinema e os seus poderes, pensar com essas imagens, em correspondência com alguns problemas que a filosofia coloca ou cria . Os problemas que a filosofia coloca ou cria: justamente, Deleuze inicia L’Image-mouvement com um comentário das teses do filósofo francês (Bergson) sobre o movimento. A razão disso é dada por Deleuze logo no "prólogo": «Apesar da crítica demasiado sumária que Bergson fará mais tarde [posteriormente a Matière et mémoire, 1896] ao cinema, nada pode impedir a conjunção da imagem-movimento, tal como ele a considera, com a imagem cinematográfica. » Aí temos uma correspondência: o problema filosófico do movimento (e do tempo) e a imagem cinematográfica. A Imagem-movimento, pensada por Bergson, não é a imagem do movimento (um corte ou uma sucessão de cortes), nem é o movimento da imagem (uma animação artificial, técnica, desses cortes), mas é, antes, tudo junto, imagem-movimento . E para Deleuze o cinema cria o auto-movimento da imagem, é determinado, em primeiro lugar, pela imagem-movimento . Esta ligação do cinema à imagem-movimento vai no entanto ser quebrada em favor de uma imagem-tempo, uma apresentação directa do tempo — a imagem-movimento apresentaria o tempo também, naturalmente, mas indirectamente — (e temos aqui uma nova correspondência, no sentido atrás mencionado). Essa imagem-tempo cinematográfica é pensada em L’Image-temps. Tudo isso tem que ver com as transformações que o cinema sofreu, igualmente com as transformações do mundo, mas também, e sobretudo no entender de Deleuze, com aquilo que com o cinema foi feito por intermédio do trabalho dos seus criadores. Esta passagem de uma imagem-movimento a uma imagem-tempo tem igualmente como substrato uma ideia bergsoniana: a de "totalidade aberta". Uma das suas teses sobre o movimento, em L’Évolution créatrice, 1907, dizia que o movimento (o deslocamento no espaço) expressa uma transformação no todo (uma mudança qualitativa na duração [durée]) e, por outro lado, que esse todo não pode ser concebido enquanto um todo fechado, mas aberto, em constante mudança, o que supunha, no entender de Deleuze, «(…) a existência de relações comensuráveis ou cortes racionais entre imagens, na própria imagem e entre a imagem e o todo .» Mas há que introduzir outro factor: o da evolução do cinema — por conseguinte, o da evolução das suas imagens. «Houve esse modelo, mas há e haverá tantos modelos quantos aqueles que ele [o cinema] inventar .» É o que se passa com o cinema moderno: ele «(…) mostra toda uma série de cortes irracionais, relações incomensuráveis entre as imagens.(…) o essencial já não é a imagem-movimento, mas antes a imagem-tempo. Deste ponto de vista, o modelo de uma totalidade aberta que decorre do movimento deixa de ter validade: deixa de haver totalização — nem interiorização num todo, nem exteriorização do todo. Deixa de haver encadeamento de imagens por intermédio de cortes racionais, passa a haver re-encadeamentos de imagens por intermédio de cortes irracionais (Resnais, Godard) .»



in

http://ubista.ubi.pt/~soccom/deleuziana.html

agosto 30, 2003





Deleuze e os bebés


"É talvez pelo personagem conceptual do bebé que Gilles Deleuze mostra talvez da forma mais profunda essa relação da vida imanente ao pensamento. A vida, na sua relação mais singular com um pensamento impessoal encarna-se na figura do bebé. Ele é inteiramente singularidade pré-individual, anterior a todas as manifestações do subjectivo. Todos os bebés se assemelham mas mostram expressões que os atravessam completamente, como um sorriso ou uma mímica. Essas expressões são as manifestações de uma vida que percorre e que singulariza, sem individualizar, o bebé. Essa anterioridade do subjectivo deixa o bebé num indefinido que não pertence senão ao sensível. Ele não é sensivelmente indeterminado sem ser ao mesmo tempo determinado como objecto sobre o plano de imanência, isto é, como consciência pré-reflexiva sem ego [moi]. Ele pertence, pois, ao campo transcendental sem consciência. Ele é um puro acontecimento que percorre todo o campo [p. 265].

O bebé assume também a forma mais típica das vontades de potência. Ele opõe-se ao guerreiro cuja função é apenas a de destruir e de dominar. O guerreiro, nessa forma mais baixa da vontade de potência, aplica ainda um julgamento. Ele reparte as partes e, nessa distribuição, age segundo um princípio de julgamento. O bebé não reparte as partes, mas, antes, as percorre de forma nómada. Nesse aspecto o bebé é o grande desterritorializado. Ele salta as cercas, ultrapassa os limites e não distribui, nunca, as partes, fundamento da faculdade de julgar. O guerreiro é grande enquanto o bebé é pequeno" [p. 271].

Stéfan Leclercq. "Deleuze et les bébés". Concepts. Número fora de série sobre Gilles Deleuze. Janeiro de 2002. Sils Maria Édition, Paris: 258-273. [tradução de Tomas Tadeu da Silva]
in
  • http://www.ufrgs.br/faced/tomaz/im_criancas.htm
  • julho 16, 2003

    Sinais (7) - Deleuze

    Edmundo Cordeiro

    Sétima e última parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.


    "Proust é platónico, mas não o é vagamente, apenas por ter invocado as essências ou as Ideias a propósito da pequena frase de Vinteuil. Platão dá-nos uma imagem do pensamento sob o signo dos encontros e das violências. Num texto da REPÚBLICA (VII, 523b-525b), Platão distingue duas espécies de coisas no mundo: as que deixam o pensamento inactivo, ou lhe dão somente o pretexto de uma aparência de actividade ; e as que dão que pensar, as que forçam a pensar. As primeiras são os objectos de recognição; todas as faculdades se exercem sobre estes objectos, mas num exercício contingente, que nos faz dizer "é um dedo", é uma maçã, é uma casa… etc. Pelo contrário, há outras coisas que nos forçam a pensar: não se trata já de objectos RECONHECÍVEIS, mas de coisas que infligem violência, sinais QUE SE ENCONTRAM. São "percepções ao mesmo tempo contrárias", diz Platão. (Proust dirá: sensações comuns a dois locais, a dois momentos.) O sinal sensível inflige-nos violência: mobiliza a memória, põe a alma em movimento; mas a alma, por sua vez, comove o pensamento, transmite-lhe o constrangimento da sensibilidade, força-o a pensar a essência como a única coisa que deve ser pensada. Desta forma, as faculdades entram num exercício transcendente, cada qual embate no seu próprio limite e alcança o seu limite próprio: a sensibilidade que apreende o sinal; a alma, a memória, que o interpretam; o pensamento, forçado a pensar a essência. Sócrates pode dizer legitimamente: mais do que o amigo, eu sou o Amor, eu sou o amante; mais do que a filosofia, eu sou a arte; em vez da boa vontade, eu sou o peixe-aranha, o constrangimento e a violência. O BANQUETE, o FEDRO e o FÉDON são os três grandes estudos dos sinais.

    Mas o demónio [espírito próprio] socrático, a ironia, consiste em antecipar os encontros. Em Sócrates a inteligência precede ainda os encontros; a inteligência provoca-os, suscita-os e organiza-os. O humor de Proust é de outra natureza: o humor judeu contra a ironia grega. É PRECISO SER-SE DOTADO PARA OS SINAIS, ABRIR-SE AO SEU ENCONTRO, ABRIR-SE À SUA VIOLÊNCIA. A inteligência vem sempre depois, é boa quando vem depois, é boa somente quando vem depois. Vimos como esta diferença relativamente ao platonismo engendrava muitas outras diferenças. DEIXA DE HAVER LOGOS, PASSA A HAVER SOMENTE HIERÓGLIFOS. Pensar é, pois, interpretar, pensar é traduzir. As essências são simultaneamente a coisa a traduzir e a própria tradução, o sinal e o sentido. As essências embrulham-se nos sinais para nos forçar a pensar, estendem-se no sentido para ser necessariamente pensadas. O hieróglifo está por todo o lado, e o seu duplo símbolo é o acaso do encontro e a necessidade do pensamento: "fortuito e inevitável"." (Sublinhados, alguns, do tradutor.)

    [FIM]

    In Urbi et Orbi, nºs 53-59, Fevereiro a Março de 2001

    in http://urbi.ubi.pt/

    SINAIS (6) - Deleuze

    Edmundo Cordeiro

    Sexta e esta sim, penúltima parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.

    Pode ser que a crítica da filosofia, tal como Proust a empreende, seja eminentemente filosófica. Qual o filósofo que não desejaria esboçar uma imagem do pensamento que não dependesse de uma boa vontade do pensador e de uma decisão premeditada? Quando sonhamos com um pensamento concreto e perigoso, sabemos bem que ele não depende nem de uma decisão nem de um método explícitos, mas do encontro com umaviolência, refractada, que nos conduz até às Essências apesar de nós próprios. Pois, as essências vivem nas zonas obscuras, não nas regiões temperadas do claro e do distinto. As essências estão embrulhadas naquilo que força a pensar, não respondem ao nosso esforço voluntário; não se deixam pensar senão na medida em que sejamos constrangidos a fazê-lo.

    [CONTINUA]

    SINAIS (5) - Deleuze

    Edmundo Cordeiro

    Quinta e penúltima parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.

    "Voluntário e involuntário não designam faculdades diferentes, mas um exercício diferente das mesmas faculdades. A percepção, a memória, a imaginação, a inteligância,o próprio pensamento, na medida em que se exerçam voluntariamente, têm somente um exercício contingente: assim, o que percepcionamos, poderíamos igualmente recordá-lo, imaginá-lo, concebê-lo; e inversamente. A percepção não nos dá nenhuma verdade profunda, nem a memória voluntária, nem o pensamento voluntário: somente verdades possíveis. Aqui, nada nos força a interpretar alguma coisa, nada nos força a decifrar a natureza de um sinal, nada nos força a mergulhar como "o mergulhador que sonda". Todas as faculdades se exercem harmoniosamente, mas cada qual no lugar de outra, no arbitrário e no abstracto. - Pelo contrário, cada vez que uma faculdade alcance a sua forma involuntária, descobre e atinge o seu próprio limite, eleva-se a um exercício transcendente, compreendendo a sua própria necessidade enquanto potência insubstituível. EM VEZ DE UMA PERCEPÇÃO INDIFERENTE, UMA SENSIBILIDADE QUE APREENDE E RECEBE OS SINAIS: O SINAL É O LIMITE DESSA SENSIBILIDADE, A SUA VOCAÇÃO, O SEU EXERCÍCIO EXTREMO. Em vez de uma inteligência voluntária, de uma memória voluntária, de uma imaginação voluntária, todas estas faculdades surgem sob a sua forma involuntária e transcendente: então, cada qual descobre aquilo em que é a única a poder interpretar, cada qual explica um tipo de sinais que lhe infligem violência em particular. O exercício involuntário é o limite transcendente ou a vocação de cada faculdade. Em vez do pensamento voluntário, tudo o que força a pensar, tudo o que é forçoso pensar, todo o pensamento involuntário que não pode pensar senão a essência. Só a sensibilidade capta o sinal enquanto tal; sós, a inteligência, a memória ou a imaginação explicam o sentido, cada qual segundo uma espécie de sinais; só o pensamento puro descobre a essência, é forçado a pensar a essência como a razão suficiente do sinal e do seu sentido." (Sublinados do tradutor.)

    [CONTINUA]

    SINAIS (4) - Deleuze

    Edmundo Cordeiro

    Quarta parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.

    "Vamos encontrar a aventura do involuntário ao nível de cada faculdade. De duas maneiras diferentes, os sinais mundanos e os sinais amorosos são interpretados pela inteligência. Mas já não se trata dessa inteligência abstracta e voluntária, que pretende encontrar por si própria verdades lógicas, ter a sua própria ordem e passar ao lados das pressões do exterior. Trata-se de uma inteligência involuntária, que sofre a pressão dos sinais, animando-se somente para os interpretar, para desse modo conjurar o vazio onde sufoca, o sofrimento que a submerge. Em ciência e em filosofia, a inteligência vem sempre antes; mas o que é próprio dos sinais é apelo que eles dirigem à inteligência na medida em que ela vem depois, na medida em que ela deve vir depois. Passa-se o mesmo na memória: os sinais sensíveis forçam-nos a procurar a verdade, e assim mobilizam uma memória involuntária (ou uma imaginação involuntária nascida do desejo). E OS SINAIS DA ARTE FORÇAM-NOS A PENSAR: ELES MOBILIZAM O PENSAMENTO PURO como faculdade das essências. DESENCADEIAM NO PENSAMENTO AQUILO QUE MENOS DEPENDE DA SUA BOA VONTADE: O PRÓPRIO ACTO DE PENSAR. Os sinais mobilizam, constrangem uma faculade: inteligência, memória ou imaginação. Esta faculdade, por sua vez, põe ela própria o pensamento em movimento, força-o a pensar a essência. Sob o incitamento dos sinais da arte, nós aprendemos o que é o pensamento puro como faculdade das essências, e como é que inteligência, a memória ou imaginação a diversificam relativamente às outras espécies de sinais." (Sublinhados do tradutor.)

    [CONTINUA]

    SINAIS (3) - Deleuze

    Edmundo Cordeiro

    Terceita parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.

    "Pensar é sempre interpretar, quer dizer, explicar, desenvolver, decifrar, traduzir um sinal. Traduzir, decifrar, desenvolver são a forma da criação pura. Assim como não há ideias claras também não há significações explícitas. Só há sentidos implicados nos sinais; e se o pensamento tem o poder de explicar o sinal, de o desenvolver numa Ideia, é porque a Ideia está já no sinal, embrulhada e enrolada, no estado obscuro daquilo que força a pensar. Não procuramos a verdade senão no tempo, constrangidos e forçados. Quem busca a verdade é o ciumento que surpreende um sinal mentiroso no rosto da amada. É o homem sensível, na medida em que encontra a violência de uma impressão. É o leitor, é o ouvinte, na medida em que o obra de arte emite sinais que o forçarão talvez a criar, como o apelo de um génio a outros génios. As comunicações da amizade faladora não são nada face às interpretações silenciosas de um amante. A filosofia, com todo o seu método e toda a sua boa vontade, não é nada face às pressões secretas da obra de arte. A criação parte sempre, como a génese do acto de pensar, dos sinais. A obra de arte nasce dos sinais na mesma medida em que os faz nascer; o criador é como o ciumento, divino intérprete que vigia os sinais em que a verdade se TRAI."

    [CONTINUA]

    SINAIS (2) - Deleuze

    Edmundo Cordeiro

    Segunda parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.

    "O grande tema do Tempo reencontrado [TEMPO REENCONTRADO é o título do último volume de EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO, de Marcel Proust] é este: a busca da verdade é a aventura própria do involuntário. O pensamento não é nada sem qualquer coisa que force a pensar, que inflija violência ao pensamento. Mais importante que o pensamento, o que "dá que pensar"; mais importante que o filósofo, o poeta. Victor Hugo faz filosofia nos seus primeiros poemas, porque ele "pensa ainda, em vez de se contentar, como a natureza, em dar que pensar". Mas o poeta descobre que o essencial está fora do pensamento, naquilo que força a pensar. O "leitmotiv" do Tempo reencontrado é a palavra FORÇAR: impressões que nos forçam a olhar, encontros que nos forçam a interpretar, expressões que nos forçam a pensar.

    (…)

    O que força a pensar é o signo. O signo é objecto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele dá que pensar. O acto de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural. É, pelo contrário, a única verdadeira criação. A criação é a génese do acto de pensar no próprio pensamento. Ora esta génese implica qualquer coisa que inflige violência ao pensamento, que o arranca ao seu adormecimento natural, às suas possibilidades unicamente abstractas."

    [CONTINUA]

    SINAIS (1) - Deleuze

    Edmundo Cordeiro

    Primeira parte da tradução de "L'image de la pensée", conclusão da Primeira Parte de PROUST ET LES SIGNES, de Gilles Deleuze, PUF, Quadrige, Paris, 1964, pp.115-124.

    "Se o tempo tem muita importância na Recherche [À LA RECHERCHE DU TEMPS PERDU, de Marcel Proust, "Em Busca do Tempo Perdido"], é porque toda a verdade é verdade do tempo. Mas a Recherche é em primeiro lugar busca da verdade. Desse modo se manifesta o alcance "filosófico" da obra de Proust: ela rivaliza com a filosofia. Proust esboça uma imagem do pensamento que se opõe à da filosofia. Ele atira-se ao que é mais essencial numa filosofia clássica de tipo racionalista. Atira-se aos pressupostos dessa filosofia. O filósofo pressupõe de bom grado que o espírito enquanto espírito, que o pensador enquanto pensador, quer o verdadeiro, ama ou deseja o verdadeiro, procura naturalmente o verdadeiro. Outorga-se antecipadamente uma boa vontade de pensar; toda a sua busca é fundada numa "decisão premeditada". Decorre daí o método da filosofia: de um certo ponto de vista, a busca da verdade seria o mais natural e o mais fácil; bastaria uma decisão e um método capaz de vencer as influências exteriores que desviam o pensamento da sua vocação e fazem que tome o falso pelo verdadeiro. Tratar-se-ia de descobrir e de organizar as ideias segundo uma ordem que seria a do pensamento, na forma de significações explícitas ou verdades formuladas que viriam preencher a busca e assegurar o acordo entre os espíritos.

    Em filósofo há "amigo". É importante que Proust dirija a mesma crítica à filosofia e à amizade. Os amigos são, um relativamente ao outro, como espíritos de boa vontade que se põem de acordo sobre a significação das coisas e das palavras: comunicam sob o efeito de uma boa vontade comum. A filosofia é como a expressão de um Espírito universal que concorda consigo mesmo para determinar significações explícitas e comunicáveis. A crítica de Proust atinge o essencial: as verdades permanecem arbitrárias e abstractas enquanto se fundarem na boa vontade de pensar. Só o convencional é explícito. É que a filosofia, como a amizade, ignora as zonas obscuras onde se elaboram as forças efectivas que actuam sobre o pensamento, as determinações que nos FORÇAM a pensar. Nunca uma boa vontade, nem um método elaborado, foram suficientes para aprender a pensar; não basta um amigo para nos aproximar do verdadeiro. Os espíritos não comunicam entre si senão o convencional; o espírito não engendra senão o possível. Às verdades da filosofia, falta a necessidade, a marca da necessidade. De facto, a verdade não se entrega, trai-se; não se comunica, interpreta-se; ela não é requerida, é involuntária. […]"

    [CONTINUA]

    junho 27, 2003

    O novo século será deleuziano? (Nuno Nabais)

    O novo século será deleuziano?

    Nuno Nabais


    QUANDO, no final da década de 60, Deleuze publicou, quase em simultâneo, Espinosa e o Problema da Expressão, Lógica do Sentido e Diferença e Repetição, Michel Foucault podia anunciar que o século XXI seria deleuziano. E grande parte da geração de Maio de 68 levou a sério esse oráculo. Daí que, em 1973, O Anti-Édipo (escrito com Félix Guattari) tivesse surgido como um manual de instruções para o futuro iminente. Essa atmosfera ainda se manteve até 1980 com a publicação de Mille Plateaux. Depois veio uma enorme ressaca. A esquerda ganhou as eleições em França, Foucault morreu, o século XXI demorava a chegar.
    Deleuze regressa às suas viagens ao interior da grande biblioteca universal. Ao mesmo tempo que escreve sobre o cinema, e sobre a pintura de Francis Bacon, publica os livros sobre Foucault e sobre Leibniz e ainda O Que É a Filosofia? (de novo com Guattari) e Crítica e Clínica. Prepara uma obra sobre Marx quando morre em 1994.

    Entretanto, sobretudo a partir dos EUA, os livros de Deleuze começam a aparecer como um imenso território de experimentação. No mundo da literatura, do teatro, da dança, da pintura, da psicanálise, do urbanismo ou mesmo da biologia, conceitos como «plano de imanência», «repetição para si mesma», «espaço estriado», «dobras orgânicas», «singularidades pré-individuais» passam a funcionar como uma nova linguagem à qual fosse urgente adaptar todos os nossos programas de trabalho. E, curiosamente, é Diferença e Repetição, o livro mais complexo e obscuro de Deleuze (e sua tese de doutoramento), que progressivamente se impõe como a chave de acesso a esse novo «software». Por isso, ao ser lançada a versão portuguesa, não podemos deixar de sentir ser esse o modo mais feliz de marcar o início deste século que Foucault tinha anunciado como deleuziano. Todo o livro funciona em regime de fogo-de-artifício deslumbrante. É uma sucessão infernal de novas figuras conceptuais que se justificam no próprio movimento da sua reformulação permanente. Numa edição de luxo (a tradução é de dois professores brasileiros especialistas na obra, e tem como prefácio um dos melhores textos de José Gil sobre Deleuze), temos agora condições óptimas para medir o grau de verdade daquele oráculo de há trinta anos.



    A partir de uma tese paradoxal - o grau máximo da diferença é o que existe na repetição de algo idêntico -, Deleuze começa por fazer explodir a equivalência, aparentemente óbvia, entre pensar e reconhecer algo num conceito. Desde Platão e Aristóteles até às teorias da referência de Russell, Quine ou Kripke, confunde-se o conceito de diferença com uma diferença simplesmente conceptual. Duas coisas só são diferentes se forem expressas por conceitos diferentes. Caso contrário, são repetições de um mesmo conceito. Correlativamente, a repetição só pode ser definida como uma diferença sem conceito. Só há repetição se dois entes ou dois acontecimentos idênticos naquilo que neles é representado forem distintos numericamente no tempo. Deste modo, tanto a diferença como a repetição dependem da identidade de algo - de uma singularidade na coisa, de uma representação num conceito. O acto de pensar seria esse jogo de espelhos entre o conceito e a pluralidade das suas referências, entre o idêntico e a multiplicidade das suas repetições.

    O programa de Deleuze é aparentemente simples. Tratar-se-ia apenas de inverter essa subordinação da experiência ao conceito. Bastaria partir de uma diferença que existisse em si mesma, que fosse anterior à própria categoria de identidade, e dela derivar as condições de possibilidade da experiência do mesmo e, portanto, da própria generalidade na representação. Mas tal passa por reescrever quatro domínios fundamentais da filosofia: a) a teoria da Natureza; b) a teoria do conhecimento; c) a ontologia do inactual; d) a fenomenologia do tempo. De facto: a) para poder colocar a diferença em si mesma como instância originária - não apenas do conhecimento como do mundo - é necessário mostrar que ela existe já na Natureza como fundamento da repetição dos acontecimentos (causa da identidade e regularidade da lei e não sua consequência); b) conhecer passa então a ser compreendido como uma actividade de invenção de problemas, os quais são sempre já constituídos por séries divergentes de soluções; c) a passagem à existência de algo puramente inactual no interior de uma espécie deve ter a condição não da efectivação de um possível genérico mas da actualização de um virtual que se define pela sua dinâmica diferencial; d) enfim, repetição e diferença têm de ser reconhecidas como dados originários da experiência do tempo, onde a própria forma do antes/depois encontra a sua possibilidade. Quatro tarefas enormes. Compreende-se que Diferença e Repetição tenha aparecido como o anúncio de um novo continente filosófico. Trinta anos depois, estaremos preparados para saber se no mapa deste novo século esse continente sempre aparece desenhado? 

    Nuno Nabais

    junho 09, 2003

    Sobre as sociedades de controle - Deleuze

    SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE* POST-SCRIPTUM


    Gilles Deleuze




    I. HISTÓRICO

    Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seu apogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola ("você não está mais na sua família"), depois a caserna ("você não está mais na escola"), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. É a prisão que serve de modelo analógico: a heroína de Europa 51 pode exclamar, ao ver operários, "pensei estar vendo condenados...". Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir no espaço; ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares. Mas o que Foucault também sabia era da brevidade deste modelo: ele sucedia às sociedades de soberania cujo objetivo e funções eram completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a produção, decidir sobre a morte mais do que gerir a vida); a transição foi feita progressivamente, e Napoleão parece ter operado a grande conversão de uma sociedade à outra. Mas as disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra mundial: sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser.



    Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um "interior ", em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. "Controle" é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultrarápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias, formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir no novo processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.


    II. LÓGICA


    Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivíduo são variáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagem comum a todos esses meios existe, mas é analógica. Ao passo que os diferentes modos de controle, os controlatos, são variações inseparáveis, formando um sistema de geometria variável cuja linguagem é numérica (o que não quer dizer necessariamente binária). Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro. Isto se vê claramente na questão dos salários: a fábrica era um corpo que levava suas forças internas a um ponto de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixo possível para os salários; mas numa sociedade de controle a empresa substituiu a fábrica, e a empresa é uma alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema de prêmios mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios, concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa. A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do "salário por mérito" tenta a própria Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa.



    Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal. Kafka, que já se instalava no cruzamento dos dois tipos de sociedade, descreveu em O processo as formas jurídicas mais temíveis: a quitação aparente das sociedades disciplinares (entre dois confinamentos), a moratória ilimitada das sociedades de controle (em variação contínua) são dois modos de vida jurídicos muito diferentes, e se nosso direito, ele mesmo em crise, hesita entre ambos, é porque saímos de um para entrar no outro. As sociedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo (Foucault via a origem desse duplo cuidado no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e cada um dos animais - mas o poder civil, por sua vez, iria converter-se em "pastor" laico por outros meios). Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se "dividuais", divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou "bancos". É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro - que servia de medida padrão -, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações que fazem intervir como cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. A velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle. Passamos de um animal a outro, da toupeira à serpente, no regime em que vivemos, mas também na nossa maneira de viver e nas nossas relações com outrem. O homem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controle é antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo. Por toda parte o surf já substituiu os antigos esportes.



    É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina, não porque as máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de lhes darem nascimento e utilizá-las. As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus. Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo. É uma mutação já bem conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do século XIX é de concentração, para a produção, e de propriedade. Por conseguinte, erige a fábrica como meio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos meios de produção, mas também eventualmente proprietário de outros espaços concebidos por analogia (a casa familiar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é conquistado ora por especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção. Mas atualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção. Não compra mais matéria-prima e já não vende produtos acabados: compra produtos acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa. A família, a escola, o exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que convergem para um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes. Até a arte abandonou os espaços fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. As conquistas de mercado se fazem por tomada de controle e não mais por formação de disciplina, por fixação de cotações mais do que por redução de custos, por transformação do produto mais do que por especialização da produção. A corrupção ganha aí uma nova potência. O serviço de vendas tornou-se o centro ou a "alma" da empresa. Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notícia mais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente dos nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado. É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas.


    III. PROGRAMA


    Não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginou uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico (dividual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal.



    O estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora, deveria ser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado no lugar dos meios de confinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia. Pode ser que meios antigos, tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, retornem à cena, mas devidamente adaptados. O que conta é que estamos no início de alguma coisa. No regime das prisões: a busca de penas "substitutivas", ao menos para a pequena delinqüência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas. No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da "empresa" em todos os níveis de escolaridade. No regime dos hospitais: a nova medicina "sem médico nem doente", que resgata doentes potenciais e sujeitos a risco, o que de modo algum demonstra um progresso em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ou numérico pela cifra de uma matéria "dividual" a ser controlada. No regime da empresa: as novas maneiras de tratar o dinheiro, os produtos e os homens, que já não passam pela antiga forma-fábrica. São exemplos frágeis, mas que permitiriam compreender melhor o que se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. Uma das questões mais importantes diria respeito à inaptidão dos sindicatos: ligados, por toda sua história, à luta contra disciplinas ou nos meios de confinamento, conseguirão adaptar-se ou cederão o lugar a novas formas de resistência contra as sociedades de controle? Será que já se pode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovens pedem estranhamente para serem "motivados", e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira.



    *DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226.

    maio 30, 2003

    De que serve perceber tão rapidamente como um pássaro veloz... - Deleuze



    De que serve perceber tão rapidamente como um pássaro veloz...

    "De que serve perceber tão rapidamente como um pássaro veloz, se a velocidade e o movimento continuam escapando noutra direcção? As desterritorializações continuam a ser relativas, compensadas pelas reterritorializações mais abjectas, por isso o imperceptível e a percepção não cessam de perseguir-se ou de correr uma atrás da outra sem nunca chegar a unir-se verdadeiramente. Em vez de buracos que permitam fugir às linhas do mundo, as linhas de fuga enrolam-se e põem-se a girar em buracos negros".


    Gilles Deleuze e Félix Guattari, Capitalisme et schizophrénie. Mille plateaux, Paris, Les Éditions de Minuit, 1980, p. 348

    abril 03, 2003

    O que é pensar? - Deleuze



    "O que é pensar?" Gilles Deleuze

    Excertos do livro: Gilles Deleuze, Foucault, 2.ed., São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 124-130.

    "Certamente, uma coisa perturba Foucault, e é o pensamento. (...) Pensar é experimentar, é problematizar. O saber, o poder e o si são a tripla raiz de uma problematização do pensamento. E, primeiramente, considerando-se o saber como problema, pensar é ver e é falar, mas pensar se faz no entremeio, no interstício ou na disjunção do ver e do falar. É, a cada vez, inventar o entrelaçamento, lançar uma flecha de um contra o alvo do outro, fazer brilhar um clarão de luz nas palavras, fazer ouvir um grito nas coisas visíveis. Pensar é fazer com que o ver atinja seu limite próprio, e o falar atinja o seu, de tal forma que os dois estejam no limite comum que os relaciona um ao outro separando-os.

    (...) em função do poder como problema, pensar é emitir singularidades, é lançar os dados. O que o lance de dados exprime é que pensar vem sempre de fora (esse lado de fora que já era traçado no interstício ou constituía o limite comum.) Pensar não é inato ou adquirido. Não é o exercício inato de uma faculdade, mas também não é um learning que se constitui no mundo exterior. Ao inato e ao adquirido, Artaud opunha o "genital", a genitalidade do pensamento como tal, um pensamento que vem de um lado de fora mais longínquo que todo mundo exterior, portanto mais próximo que todo mundo interior. Devemos chamar de Acaso esse fora? E, realmente, o lance de dados exprime a relação mais simples de forças, ou de poder, aquela relação que se estabelece entre singularidades obtidas ao acaso (os números sobre as faces). (...) O acaso só vale para o primeiro lance; talvez o segundo lance se dê em condições parcialmente determinadas pelo primeiro, como numa cadeia de Markov, uma sucessão de reencadeamentos parciais.

    E é isto o lado de fora: a linha que não pára de reencadear as extrações, feitas ao acaso, em mistos de aleatório e de dependência. Pensar assume aqui, então, novas figuras: obter singularidades; reencadear as extrações, os sorteios; e inventar, a cada vez, as séries que vão da vizinhança de uma singularidade à vizinhança de outra. Existem singularidades de todos os tipos, sempre vindas de fora; singularidades de poder, apanhadas em relações de forças; singularidades de resistência, que preparam as mutações; e mesmo singularidades selvagens, que ficam suspensas no lado de fora sem entrar em relações nem se deixar integrar... (e somente aí o "selvagem" adquire sentido, não como experiência, mas como o que ainda não entra na experiência).

    Na "Ordem do Discurso" (...) Foucault invoca uma "exterioridade selvagem" e toma o exemplo de Mendel, que constituía objetos biológicos, conceitos e métodos inassimiláveis pela biologia da sua época. Isso não é nem um pouco contraditório com a idéia de que não há experiência selvagem. Não há, porque toda experiência já supõe relações de saber e relações de poder. Ora, precisamente, as singularidades selvagens são repelidas para fora do saber e do poder, nas "margens", de tal forma que a ciência não pode reconhecê-las.

    Todas estas determinações do pensamento já são figuras originais do seu ato. E durante muito tempo Foucault não acreditou que pensar pudesse ser outra coisa além disso. Como o pensar poderia inventar uma moral, se o pensamento não pode encontrar nada em si mesmo exceto esse lado de fora do qual provém e que reside nele como "o impensado"? (...) Entretanto, Foucault pressente a emergência de uma estranha e última figura: se o lado de fora, mais longínquo que todo o mundo exterior, é também mais próximo que todo o mundo interior, isso não será sinal de que o pensamento se afeta a si próprio, descobrindo o lado de fora como o seu próprio impensado? (...) Esta afecção de si, esta convenção do longínquo e do próximo, vai assumir importância cada vez maior, constituindo um espaço do lado de dentro, que estará inteiro co-presente no espaço do lado de fora, na linha da dobra. O impensado problemático dá lugar a um ser pensante que se problematiza a si próprio, como sujeito ético (em Artaud é o "genital inato", em Foucault é o encontro de Si e da sexualidade). Pensar é dobrar, é duplicar o fora com um dentro que lhe é coextensivo. A topologia geral do pensamento, que começava já "na vizinhança" das singularidades, se completa agora dobrando-se o lado de fora ao lado de dentro (...)

    Se o lado de dentro se constitui pela dobra do de fora, há entre eles uma relação topológica: a relação consigo é homóloga à relação com o lado de fora, e os dois estão em contato, intermediado pelos estratos, que são meios relativamente exteriores (portanto, relativamente interiores). É todo o lado de dentro que se encontra ativamente presente no lado de fora sobre o limite dos estratos. O dentro condensa o passado (longo período), em modos que não são de forma alguma contínuos, mas o confrontam com um futuro que vem de fora, trocam-no e recriam-no. Pensar é se alojar no estrato no presente que serve de limite: o que é que posso ver e o que posso dizer hoje? Mas isso é pensar o passado tal como se condensa no dentro, na relação consigo (há um grego em mim, ou um cristão...). Pensar o passado contra o presente, resistir ao presente, não para um retorno, mas "em favor, espero, de um tempo que virá" (Nietzsche), isto é, tornando o passado ativo e o presente fora, para que surja enfim algo novo, para que pensar, sempre, suceda ao pensamento. O pensamento pensa sua própria história (passado), mas para se libertar do que ele pensa (presente) e poder, enfim, "pensar de outra forma" (futuro).

    As três instâncias da topologia são relativamente independentes e estão constantemente em troca mútua. Cabe aos estratos produzir, incessantemente, camadas que fazem ver ou dizer algo de novo. Mas também cabe à relação com o fora colocar novamente em questão as forças estabelecidas e, finalmente, cabe à relação consigo chamar e produzir novos modos de subjetivação. (...)

    "Nunca escrevi senão ficções ..." Mas nunca a ficção produziu, tanto, verdade e realidade. Como poderíamos contar a grande ficção de Foucault? O mundo é feito de superfícies superpostas, arquivos ou estratos. Por isso o mundo é saber. Mas os estratos são atravessados por uma fissura central, que reparte de um lado os quadros visuais, de outro, as curvas sonoras; o enunciável e o visível em cada estrato, as duas formas irredutíveis do saber, Luz e Linguagem, dois vastos meios de exterioridade onde se depositam, respectivamente, as visibilidades e os enunciados. Nós estamos, então, presos num duplo movimento. Penetramos de estrato em estrato, de faixa em faixa, atravessamos as superfícies, os quadros e as curvas, acompanhamos a fissura, para tentar atingir um interior do mundo: como diz Melville, procuramos uma câmara central, com medo de que ali não haja ninguém, e a alma humana revele um vazio imenso e aterrorizante (quem pensaria em procurar a vida nos arquivos?). Mas, ao mesmo tempo, tentamos subir para cima dos estratos, para atingir um lado de fora, um elemento atmosférico, uma "substância não estratificada" que pudesse explicar como as duas formas do saber podem se agarrar e se entrelaçar em cada estrato, de uma borda a outra da fissura. Senão, como as duas metades do arquivo poderiam se comunicar, e enunciados aparecerem sob os quadros, e quadros ilustrarem os enunciados?

    Esse lado de fora informe é uma batalha, é como uma zona de turbulência e de furacão, onde se agitam pontos singulares, e relações de forças entre esses pontos. Os estratos apenas recolhiam, solidificavam a poeira visual e o eco sonoro de uma batalha que se travava por cima deles. Mas, em cima, as singularidades não têm forma e não são nem corpos visíveis nem pessoas falantes. Entramos no domínio dos duplos incertos e das mortes parciais, das emergências e dos desvanecimentos. É uma microfísica. (...)

    A cada estrato atmosférico nessa zona corresponde um diagrama das forças ou das singularidades tomadas nas relações: uma estratégia. Se o estrato são da terra, a estratégia é aérea ou oceânica. Mas cabe à estratégia atualizar-se no estrato, cabe ao diagrama atualizar-se no arquivo, à substância não-estratificada cabe estratificar-se. Atualizar-se é, ao mesmo tempo, integrar-se e diferenciar-se. Atualizar-se é, ao mesmo tempo, integrar-se e diferenciar-se. As relações de forças informes se diferenciam criando duas formas heterogêneas, a das curvas que passam na vizinhança das singularidades (enunciados) e a dos quadros que as repartem em figuras de luz (visibilidades). E as relações de forças se integram ao mesmo tempo, precisamente nas relações formais entre ambas, de um lado a outro da diferenciação. É que as relações de forças ignoravam a fissura, que só começa embaixo, nos estratos. Elas têm capacidade de aprofundar a fissura atualizando-se nos estratos, mas também de saltar por cima, nos dois sentidos, diferenciando-se sem deixar de se integrar.

    As forças vêm sempre de fora, de um fora mais longínquo que toda forma de exterioridade. Por isso não há apenas singularidades presas em relações de forças, mas singularidades de resistência, capazes de modificar essas relações, de invertê-las, de mudar o diagrama instável. E existem até singularidades selvagens, não ligadas ainda, na linha do próprio fora e que borbulham justamente em cima da fissura. É uma terrível linha que mescla todos os diagramas, em cima até dos furacões, a linha de Melville, de duas extremidades livres, que envolve toda a embarcação em seus meandros complicados, que passa, quando chega o momento, por horríveis contorções e arrisca-se sempre a arrastar um homem quando corre solta; (...) Mas, por mais terrível que seja essa linha, é uma linha de vida que não se mede mais por relações de forças e que transporta o homem para além do terror. Pois, no local da fissura, a linha forma uma fivela, "centro do ciclone, lá onde é possível viver, ou, mesmo, onde está, por excelência, a Vida." É como se as velocidades aceleradas, de pouca duração, constituíssem "um ser lento" sobre uma duração mais longa. É como uma glândula pineal, que não pára de se reconstituir variando sua direção, traçando um espaço do lado de dentro, mas coextensivo a toda uma linha do lado de fora. O mais longínquo torna-se interno, por uma conversão ao mais próximo: a vida nas dobras. É a câmara central, que não tememos mais que esteja vazia, pois o si nela está situado. Aqui, é tornar-se senhor da sua velocidade, relativamente senhor de suas moléculas e de suas singularidades, nessa zona de subjetivação: a embarcação como interior do exterior".




    in Gilles Deleuze, Foucault, 2.ed., São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 124-130.