dezembro 08, 2003

Na morte de Deleuze

Na morte de Deleuze


José Bragança de Miranda

A filosofia já não é o que era. Outrora amante do saber, e por esse amor crítica e até revolucionária, tornou-se recitação de si própria como história da filosofia. E, quando isto não lhe bastava, para sobreviver a si própria, foi em busca do que lhe faltava à ciência, à linguística, à lógica ou à pragmática. A tal ponto que, aqueles que a amavam foram obrigados a destruí-la, como foi o caso de Nietzsche, de Heidegger ou de Foucault. Gilles Deleuze e toda a sua obra introduziram uma dissônancia neste quadro. A sua vida filosófica foi durante anos uma vida da filosofia, a tal ponto que a certo momento me parecia difícil distinguir a obra e o homem. As duas projectavam uma mesma sombra, inquietantemente estranha, que o impelia a evitar os compromissos do pensar com o tempo, a negociação com os poderes, ou o diálogo sobre as ideias. No que é talvez o seu último texto, publicado na revista Philosophie de Setembro deste ano, vem o título «A imanência, uma vida...». Pouco antes antes de se precipitar na morte, voluntariamente, fala de vida, de uma «vida de pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, pois que apenas o sujeito que a incarnava no meio das coisas a tornava boa ou má». O acontecimento da morte em vida, que a doença sempre é, não era aceitável para Deleuze. O acontecimento que o singularizava era a filosofia, e não poder prossegui-la devido à doença, não poder continuar através da filosofia, leva ao fim a vida de Deleuze. Não se podia pedir-lhe, então, que continuasse mais longe, depois de tudo estar consumado. E estava, de facto.

http://pwp.netcabo.pt/jbmiranda/jbm_deleuze.htm