abril 30, 2005

Alfabeto - Henri Michaux

Alfabeto

Estava eu no frio da morte a aproximar-se, quando pela derradeira vez me pus a fitar os seres, profundamente.

Ante o contacto mortal deste olhar de gelo, tudo o que não era essencial desapareceu. Entretanto eu ia-os perscrutando, querendo reter deles algo que nem o Morto pusesse largar. Eles adelgaçaram-se e acabaram por ficar reduzidos a uma espécie de alfabeto, mas um alfabeto capaz de servir no outro mundo, em qualquer mundo.

Aliviei-me assim do medo de me subtraírem o universo inteiro onde eu tinha vivido. Fortalecido com tal presa, contemplava-o invencido, e regressando o sangue, com a satisfação, às minhas arteríolas e veias, lentamente voltei a subir a vertente aberta da existência.

Henri Michaux O retiro pelo risco Lisboa Fenda, pp. 34-35

abril 13, 2005

A poesia e a filosofia - Entrevista com Maria Filomena Molder

Entrevista com Maria Filomena Molder

Pergunta: Acha que a poesia e a filosofia vão a par ou a poesia está mais à frente da filosofia?

Maria Filomena Molder - Está mais à frente, está. Penso duas coisas sobre a filosofia, duas coisas que não são conciliáveis e uma delas só a penso mais recentemente. Uma, que sempre pensei, é que a filosofia é um actividade contemplativa. A poesia, não, a poesia é actividade.

Simplesmente. O que eu pensava antes é que a filosofia era um género literário e agora, embora com hesitações, acho que afilosofia é uma actividade contemplativa que se converteu em género literário e que tende a superar-se enquanto género literário. No fundo, a tensão da filosofia é deixar a escrita, é deixar o género literário. Essa não é a tensão da poesia. A filosofia é uma actividade estranhíssima, porque por um lado quer ocontacto íntimo com o que há e, por outro, sabe que só experimenta esse contacto através da contemplação. E a contemplação exige, por ordem natural de si mesma, separação. Essa é a matrizda filosofia. A conversão em género literário foi feita por Platão e nunca mais ninguém escreveu como Platão, nem escreveu sob aquele modelo de género literário, que é um ajuste de contas com a poesia. Platão pensava que estava a pagar uma dívida à poesia e que a dívida ficava assim saldada. O pagamento da dívida está na decisão de expulsar os poetas, mas depois de os ter reverenciado e delhes ter cortado a cabeça. O ajuste de contas de Platão é escrever como escreveu, e isso foi aconversão da filosofia em género literário.

Pergunta - Poder-se-ia dizer que poesia e filosofia desejam ambas nomear o ser e a coisa?

Filomena Molder - Eu diria assim — a poesia deseja nomear o ser e a filosofia também, mas a filosofia introduz, entre a nomeação do ser ou da coisa, o sistema conceptual e argumentativo. Isso não existe na poesia, embora a poesia trabalhe com conceitos, já que qualquer palavra tende a ser um conceito. A poesia não é música pura, nem é procura do conceito, é uma ligação, difícil de estabelecer, em termos teóricos, entre a aproximação máxima à musicalidade de uma língua e a intimação mais íntima à compreensão".

[Publicada na revista "Pública" de 8 de Setembro de 2002, do jornal "Público" nº 4554, pp. 34-39]