setembro 26, 2012

Portugal necessita urgentemente de uma outra troika




O post de Pedro Rodrigues Costa no Facebook de 25 de Setembro de 2012 : 

"Não vejo maneira de sairmos deste estado de coisas neste país. Os arautos que todos os dias desfilam na TV fazem uma campanha quase ao nível da propaganda salazarista para favorecer a via única de pensamento (os mass-media não estão nada isentos de culpa do estado actual do país). Desde o Camilo Lourenço até ao Bagão Félix, do Marcelo Rebelo de Sousa ao Marques Mendes, da RTP à SIC, da SiC Notícias à TVI24, são sempre os mesmos a vender receitas e a construir opiniões. Mais grave: são os mesmos, ou a mesma cartilha, que nos colocaram aqui, e agora ainda dão sugestões."


Caro Pedro Rodrigues Costa

É um prazer ler um texto inteligente e bem escrito. E que, ainda por cima, acerta no alvo. Em Portugal, estamos sendo governados por empregados de escritório burocratas robotizados. "Entregou-se ao gestor de números", seres que sofrem da grave enfermidade chamada quantofrenia, "o governo das pessoas e das culturas!"


Como diz um bloguista anónimo, F. Nogueira, "não sei se já se aperceberam, mas a quantofrenia está a enlouquecer-nos. Convirá talvez dizer, para aqueles que deixaram de estudar à saída da escola, seja primária, secundária ou superior, que “quantofrenia é uma visão unicamente quantitativa, na qual toda a concepção das qualidades desaparece”. O que importa são os números, não a realidade que representam. É uma moda importada, porque modas nossas temos poucas". http://sabordabeira.blogspot.com.es/2012/03/quantofrenia.html


Para caracterizar este Portugal estranho de começos do século XXI, a inspiração surgiu-me a partir de um texto do escritor e poeta Fernando Pessoa, escrito na segunda ou terceira década do século XX, sobre os vários tipos de portugueses

Refere, se bem me recordo, essencialmente três.

1 - Os obreiros, camponeses e parte da classe média que actualmente, tendo uma origem operária ou rural, se contenta com um trabalho imaterial, um emprego seguro, frustrante e sem ambições. Que sempre foram explorados e que têm, apesar de serem uma enorme maioria, horizontes limitados pelo seu silêncio e raiva improdutiva. 
 São, na sua maioria, indignados envergonhados e impotentes que apenas "ladram" e depois clicam no "gosto" do Facebook que critica o Coelho ou o Relvas mas não se dão à chatice de se misturarem com os manifestantes (selvagens para muitos deles). Os que, sem o saberem conscientemente, se submetem diariamente a doses infernais de intoxicação voluntária de TV e outras "drogas" legais (Portugal é o país campeão, na Europa, no consumo do anti-depressivo Prozac). A apatia e o respeito, um pouco ressentido, e a amabilidade postiça são a sua marca. Encontram-se arredados dos governos votando sob a influência das paixões ou de impulsos não racionalizados que os media e o marketing controlam. Ser ou votar num partido parece-se um pouco à fé que suporta a adesão clubística no futebol. Não admira, por isso, que, do ponto de vista da ciência política, sejamos o país mais previsível do mundo. E, de algum modo, somos sempre governados pelos mesmos, por um centrismo cada vez mais tecnocrata e acéfalo. Alguém me pode dizer qual a diferença real que separa um Sócrates de um Passos Coelho? Ou de um esforçado mas pouco convincente António José Martins Seguro. Na descrição clara do filósofo José Gil, os portugueses deste tipo, com medo da inveja real que caracteriza as sociedades patriarcais mediterrânicas, parece que têm medo de existir. Talvez o caso português, o caso de um país semi-periférico "estranho" como dizia o conhecido sociólogo português Boaventura Santos na década de 80, seja um osso mais duro de roer do que se imagina. 

2 - Os dirigentes e intelectuais estrangeirados que reproduzem as modas estrangeiras de forma acrítica e sem os adaptarem efectivamente à nossa idiossincrasia. Inspirado no filósofo do Maio de 68 em França, G. Deleuze, diria que, nesta forma de estar no mundo, há algo de "frénico" que receia a sua diferença e o seu eu profundo. São, usando como mote a figura de Cavaco Silva, rapazinhos bem comportados e exemplares procurando sempre a aprovação do "pai" "Europa" ou, agora, a TROIKA. Exemplos dados por Fernando Pessoa: desde o Marquês de Pombal com o seu absolutismo radical, passando pelos liberais e românticos do século XIX, aos republicanos da maçonaria de 1910 que ainda dominam muito dos políticos do centro, aos comunistas ortodoxos inspirados numa utopia que se transformou num pesadelo e, por fim, aos cínicos do neo-liberalismo de Cavaco Silva, Sócrates (em parte) e o nosso actual primeiro ministro Passos Coelho. Socialmente este tipo constitui a base de recrutamento para deputado, ministro e líder de partidos políticos maioritários. "Grande parte das classes médias superiores, certa parte do povo e quase toda a classe dirigente" (usando as palavras de Fernando Pessoa). O problema não está em ser estrangeirado. Está, segundo Pessoa, em ser um estrangeirado provinciano que quando fala com um inglês, francês ou alemão parece ter vergonha de dizer que é português.

E, por fim, 3 - os sonhadores realistas e pragmáticos que, embora sendo críticos do provincianismo congénito de muitos portugueses, vêem os ditos "defeitos" como potencialidades, como diferenças que se podem, se bem administradas, potenciar: a nossa preguiça, o nosso sentido de comunidade, a nossa capacidade de aventura e de improvisação, etc. Consiste em sublinhar que aquilo que parece um veneno, num contexto de crise, pode ser o remédio, o phármakon de que falavam os gregos antigos.    
 Sonhadores que inspiram, de algum modo, os novos líderes surgidos dos movimentos sociais das redes sociais como o Facebook. São os seres, muitos ainda jovens (e não apenas na idade cronológica), que, segundo Pessoa, continuam, maioritariamente "navegando no novo mar da" internet animados pelo sonho dos nossos primeiros investigadores que criaram, segundo o filósofo do séc. XVII Francis Bacon e todos os historiadores da ciência, as bases da ciência moderna como utopia de conhecimento e interculturalidade. Que estão na base de utopias como as concretizadas na América Latina por alguns dos nossos intelectuais (ver o caso notável do nosso Padre António Vieira, defensor dos indígenas e um ecologista avant la lettre).
 Embora fossem humanistas e defensores de uma lógica de diálogo e argumentação próxima das ciências sociais e da literatura, eram também homens de acção que transformaram a utopia em real. Que assumiram, como defende o filósofo Gilles Deleuze, que tudo é virtual, mesmo a realidade mais objectiva, tudo é sonho que se activa pela acção séria e comunitária. Usando a linguagem pessoana: "Deus", no sentido galáctico e panteísta, "quer, o homem sonha e a obra nasce". 
 O Sonhador da era digital será, em grande medida, uma mescla de um Agostinho da Silva utópico e imaginativo com um jovem animador político hacker pragmático da internet. Na verdade, a crise do sistema nomeadamente o escolar e o desemprego estão a deitar cá para fora milhares de potenciais sonhadores realistas que, com lucidez, devem evitar cair nos erros dos seus pais. Podem, de certa forma, como dizia Pessoa, fazer cumprir o sonho dos nossos antepassados valentes e sábios que deram novos mundos ao mundo, uma nova cosmovisão.

Recriando o diagnóstico de F. Pessoa, Portugal necessita urgentemente de uma outra troika. 

A troika, a servir de guia a um governo de sonhadores pragmáticos, teria três "medicamentos" para usar de forma incisiva e com energia: imaginação controladaactos emocionais políticos com um fundo ético (mas nunca moralista) e capacidade de improvisar organizadamente.

1 - É necessária e urgente uma imaginação controlada que não recusa de forma infantil, no seu todo, a economia de mercado. Mas que, ao mesmo tempo,  não assume os seus dogmas e a sua crueldade. Muitos dos livros recentes na área da economia exprimem um sintoma desta transformação que mostra os limites do modelo "neo-liberal" de desenvolvimento. Alternativas emergem por todos os lados em micro-experiências que poderão, pouco a pouco, ser alargadas a outras áreas da actividade humana. 
 A esquerda mais radical deveria abandonar o seu complexo de édipo infantil assumindo-se como uma alternativa clara de governo sem se ficar pelas margens folclóricas do capitalismo. Isso não quer dizer que se devam abandonar esses temas. Inspirados na sabedoria popular, no tão desprezado senso comum como dizia o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, deve-se ter a noção de que um radicalismo demasiado acentuado pode matar o doente com o seu remédio.


2 - Actos políticos em que a emoção, a compaixão no seu sentido nobre serve de guia sem se deixar dominar por paixões e fanatismos perigosos com conotação de "esquerda" ou "direita". Assumir que não há decisões apenas racionais e que a emoção deve assumir uma forma essencialmente ética mas nunca moral seguindo assim o que nos dizia há séculos atrás o grande filósofo ateu, filho de portugueses, Bento de Espinosa. Compaixão autêntica pelos desempregados reais, pelos idosos que vivem com pensões no limite da vida; casais jovens com esgotamentos psicológicos e crianças subnutridas, ter consciência das agressões no ambiente, e na nossa psique, provocadas pelo modelo mercantil de vida, respeitar a natureza tendo uma consciência cada vez mais planetária como era o caso de alguns dos nossos primeiros navegadores etc, etc. Esta consciência deve constituir o fundo obrigatório das decisões políticas mais importantes obrigando os políticos a justificar-se em público. É claro que esta utopia realista necessita de  novos media não subjugados e jamais acéfalos. Imitar um pouco a sensibilidade emergente de um político como Lula da Silva com medidas como o Banco Alimentar, Marina Silva (candidata ecologista nas presidenciais do Brasil com 20% dos votos) e muitos outros políticos não "redondos" como diz justamente o escritor uruguaio Eduardo Galeano (ver vídeo no final). 
 E, finalmente,

3 - usar a nossa conhecida capacidade de improvisação (muitas vezes denegrida de forma masoquista pelos estrangeirados de esquerda e direita) para a potenciar sem nos deixarmos levar pelo facilitismo. Improvisação organizada ou o que algumas teorias organizacionais definem, de forma negativa, como uma "anarquia organizada" e negociada mas com pontos fortes de decisão de forma a evitar a negociação instável. Desburocratizar ainda mais a sociedade (um dos êxitos dos governos Sócrates) valorizando as lógicas de rizoma, descentradas como as redes na net, na inovação social. Agilizando ainda mais as relações da sociedade civil com a função pública e o Estado. Mas não caindo na lógica brutal do "menos estado" a todo o custo. Tentar consensos mas de forma assertiva e incisiva negociando duramente com os interesses da banca e das organizações empresariais. E, acima de tudo, potenciar os recursos de saber das Universidades e instituições emergentes em que a formação e a investigação se assumem de forma activa e participada. Recusar a loucura da tecnocracia cega inspirada nas obras da construção civil e na euforia informática. Ter em conta que, por exemplo, Portugal está na vanguarda nas inovações comunitárias auto-sustentáveis induzidas em grande parte por jovens europeus imigrantes descontentes com o modelo de vida neo-liberal da Europa Central. 


É necessário e urgente, para conseguirmos sobreviver como entidade independente e saudável, dar lugar a esses sonhadores-improvisadores realistas (verdadeiros inovadores sociais gestalticos, usando a linguagem empresarial da economia) com a sua "medicina". Talvez seja a hora de retirar o governo desta comunidade territorial chamada Portugal aos "estrangeirados" que sempre se venderam às modas europeias ou norte-americanas baseadas na crença no racional e na quantidade, ou seja, o paradigma da economia clássica. Necessitamos de sonhadores pragmáticos como de água para a boca. 


Talvez seja a hora, glosando Fernando Pessoa, de Portugal se cumprir como utopia planetária.



Um abraço

José Pinheiro Neves


Inspirado essencialmente na obra de Fernando Pessoa e do filósofo francês Gilles Deleuze. O livro de Fernando Pessoa que me inspirou neste manifesto foi: Sobre Portugal. Introdução ao problema nacional, Lisboa, Ática, 1979.

Também me baseei em muitas leituras e diálogos no Facebook e em dezenas de blogues, quase todos de anónimos, que por vezes consulto. Finalmente, destaco, sem qualquer ordem de mérito e esquecendo infelizmente muitos, as conversas com os sociólogos Pedro Rodrigues Costa e Esser Jorge Silva, alguns livros do Padre António Vieira, do filósofo do Maio de 68, Gilles Deleuze, do escritor uruguaio Eduardo Galeano, do filósofo José Gil, do sociólogo e comunicólogo Moisés de Lemos Martins, do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, do pensador das novas formas de ser na Internet, Pedro Andrade, do referido Pedro Rodrigues Costa, de Esser Jorge Silva e naturalmente textos da minha autoria dispersos por livros e artigos.



O post de Pedro Costa no Facebook de 25 de Setembro de 2012 : 

"Não vejo maneira de sairmos deste estado de coisas neste país. Os arautos que todos os dias desfilam na TV fazem uma campanha quase ao nível da propaganda salazarista para favorecer a via única de pensamento (os mass-media não estão nada isentos de culpa do estado actual do país). Desde o Camilo Lourenço até ao Bagão Félix, do Marcelo Rebelo de Sousa ao Marques Mendes, da RTP à SIC, da SiC Notícia
s à TVI24, são sempre os mesmos a vender receitas e a construir opiniões. Mais grave: são os mesmos, ou a mesma cartilha, que nos colocaram aqui, e agora ainda dão sugestões. A ideia é sempre a mesma: «andamos anos a gastar mais do que o que tínhamos». Por outras palavras, isto quer dizer que temos que equilibrar a balança comercial. Mas agora questionemos: quem é que mais incentivou o consumo desenfreado? Resposta: governos e banca! Quem é que mais gastou acima das posses? Governo e Banca! Quem é chamado para pagar estes erros político-estratégicos? O povo português mais desfavorecido (classes baixas e médias)! O que é que acontece a quem cometeu estes erros e esta gestão danosa espalhada pelo país? Nada! Pelo contrário, ainda tem o prémio de ter lugar cativo nas TVS a sugerir soluções. Mas porque é que estamos aqui? Fundamentalmente, por uma só razão que tudo absorve: entregou-se ao gestor de números a gestão de pessoas e de culturas! Tudo o resto, é consequência da sobreposição do número face ao resto do universo. Onde está uma prova para esta afirmação? Olhem apenas para a Finlândia e para a Suécia, e contem as diferenças na gestão e nas políticas dos últimos 30 anos. Essas tiveram um único objectivo: melhorar a vida das PESSOAS, e não dos números. Conclusão: são hoje 2 dos países mais competitivos do mundo, com salários médios a rondar os 2500 euros e com indicadores de bem-estar geral no topo. Tenho poucas certezas, mas esta é garantida: se é para continuar com soluções orientadas para o cumprimento de números, teremos tudo menos solução à vista. E certamente mais sábados, muito mais violentos, do que o do dia 15!"