outubro 20, 2012

Muitos daqueles que encaramos como doentes mentais são aqueles que estão mais próximos da sua autenticidade.

"As organizações têm formas de o convencer, e é sempre na base do suposto bem comum, de horizontes mais vastos ou, quando essa argumentação falha, na base da ameaça velada, mas o nosso náufrago não se deixa convencer facilmente: a sua bússula interior resiste à manipulação exterior, por mais elaborados que sejam os argumentos. E se não estiver em condições de não obedecer, adoece: dores de cabeça, úlceras, fobias, ataques de pânico, neuroses, estados depressivos.

Precisamente: muitos daqueles que encaramos como doentes são aqueles que estão mais próximos da sua autenticidade. E muitos daqueles que consideramos saudáveis, porque se adaptam sem questionar às normas e práticas das organizações, são incapazes de sentir a dor do desamparo, incapazes de sentir empatia e compaixão. A sua estrutura, digamos assim, formou-se a evitar essa dor muito precoce, identificando-se, para se defender da vulnerablidade do desamparo, com o vencedor. Como se a vida passasse a ser uma questão de ganhar ou perder, vencer ou falhar. Como se as pessoas não fossem por natureza frágeis e vulneráveis, contraditórias e paradoxais, mas apenas vencedores ou falhados, os “nossos” e “os outros”. É evidente que aqueles que se regem por esta lógica do poder irão sentir-se atraídos pelo poder e vemo-los em organizações, em lugares de gestão ou a gravitar à sua volta.

Pensem então por momentos nas implicações desta realidade: quem encontramos em lugares de poder, de exercer o poder, de decidir pelas nossas vidas, são muitos daqueles que se regem por normas e práticas alheias às nossas vidas, e, no limite, contra as nossas vidas. Dito assim, é assustador, não é? Agora tentemos transpor tudo isto para o que se está a passar no ocidente, sobretudo EUA e Europa. O que é que estes gestores do poder político e económico andaram a fazer? E o que é que insistem em continuar a fazer? A jogar com as nossas vidas, as vidas de pessoas reais, carne e ossos, sentimentos e emoções. Percursos e expectativas reais. Se as respeitassem diziam-lhes a verdade. Se as respeitassem reconheciam os erros e mudavam de rumo".

outubro 13, 2012

Conversas ecosóficas: a política obscena


Richard Drew/Associated Press


Há algo de obsceno na política que nos governa neste começo de século. Há, ao mesmo tempo, uma sensação de impunidade geral que alastra como uma gota de azeite. De onde virá esta obscenidade que suporta a impunidade e escandaliza os mais autênticos e puros?

Como funcionam a lei e todas as instituições surgidas com o grande feitiço que possui a sociedade ocidental desde há uns 2 ou 3 séculos? Como funciona nos bastidores? 

Pois, desiludam-se os que pensavam que estamos sendo governados por seres com ética. É um mundo obsceno. Que não vê. 

A obscenidade que permite que o putativo futuro presidente do FMI (Strauss-Kahn, se a memória não me trai), acusado de violação, fosse encarado com uma vítima. "Pobre dele, pensam alguns, apenas fez algo de normal em qualquer patriarca ocidental". O jogo da ambivalência, da mentira suave que entranha a visão mercantil do mundo. Será que este ex-director do FMI, mais tarde demonizado, se distingue no essencial dos seus colegas? Não, não é uma questão individual. Qualquer um, vivendo nestes meios institucionais, possivelmente não resistiria à atracção do uso impune do poder. É um grande afrodisíaco que, como o escritor Eduardo Galeano denunciou, permite que alguns milhares de pessoas, nas instituições e nas grandes corporações, controlem efectivamente a economia mundial sem se submeterem a eleições ou discussão democrática. É uma qualidade geral do vírus que Marx denominou, justamente ou não, capitalismo. E é o que sustenta, em última instância, toda esta encenação diária.

Uma pista que talvez ajude. É a própria matriz desta forma de produzir socialmente, forma mercantilizada avançada e imaterializada, que é, em si mesma, desde o seu nascimento por volta do século XVIII, obscena e cruel. A mercadoria foi o meu primeiro momento deste grande feitiço colectivo como muito bem viu o atento Karl Marx. A crueldade que nos leva a não ver a força de trabalho na mercadoria e no seu corolário virtual, o dinheiro e o capital. Uma forma de cegueira que o "capital" cria. Que a economia clássica aprofunda e legitima. Sem problemas pois são os que mais ganham com o "feitiço" colectivo. É, sem qualquer dúvida, uma cegueira muito bem ensinada e, pior, interiorizada que permite um sono sem culpas. As palavras do pensador Slavoj Zizek não poderiam ser mais adequadas para ver que o engano do FMI não é, na sua essência, um engano. É uma obscenidade.

Palavras do pensador Slavoj Zizek: "... o complemento obsceno como a outra face da lei [e de todas as instituições sociais, acrescento eu]. Se observarmos qualquer estrutura normativa, vemos que, para se manter, esta estrutura tem de depender de certas regras não escritas, tácitas, e que como tal devem permanecer; estas regras têm sempre uma dimensão obscena. O exemplo típico que dou é o da comunidade militar na qual, a um certo nível, há um conjunto de regras explícitas (hierarquia, modos de procedimento, disciplina, etc.), mas, para que estas regras explícitas funcionem necessitam de um complemento obsceno: quer dizer, todas as regras obscenas não escritas que mantêm uma comunidade militar - "graçolas sujas" sexistas, rituais sádicos, ritos de passagem, etc. - Todo aquele que fez o serviço militar sabe que a disciplina militar no seu conjunto se mantém em última instância graças a este reverso obsceno." Slavoj Zizek"Arriesgar lo Imposible. Conversaciones con Glyn Daly, Madrid, Ed. Trotta, 2006, p. 123 (trad. de Vitor Manuel Oliveira Jorge). 

Agradeço a Vítor Manuel Oliveira Jorge o acesso a este texto.