novembro 25, 2006

"Vida nua, vida besta, uma vida" por Peter Pál Pelbart

"Ao reduzir a existência ao seu mínimo biológico, o biopoder contemporâneo nos transforma em meros sobreviventes.

O contexto contemporâneo se caracteriza por uma nova relação entre o poder e a vida. Por um lado, uma tendência que poderia ser formulada como segue: o poder tomou de assalto a vida. Isto é, ele penetrou todas as esferas da existência, e as mobilizou inteiramente, pondo-as para trabalhar. Desde os gens, o corpo, a afetividade, o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade, tudo isso foi violado, invadido, colonizado, quando não diretamente expropriado pelos poderes. [...]


O corpo

Tomemos a título de exemplo o superinvestimento do corpo que caracteriza nossa atualidade.Desde algumas décadas, o foco do sujeito deslocou-se da intimidade psíquica para o próprio corpo. Hoje, o eu é o corpo. A subjetividade foi reduzida ao corpo, a sua aparência, a sua imagem, a sua performance, a sua saúde,a sua longevidade. O predomínio da dimensão corporal na constituição identitária permite falar numa "bioidentidade". É verdade que já não estamos diante de um corpo docilizado pelas instituições disciplinares, como há cem anos atrás,corpo estriado pela máquina panóptica, o corpo da fábrica, o corpo do exército,o corpo da escola. Agora cada um se submete voluntariamente a uma ascese,científica e estética a um só tempo. É o que Francisco Ortega chama de bioascese (7). Por um lado, trata-se de adequar o corpo às normas científicas da saúde, longevidade, equilíbrio, por outro, trata-se de adequar o corpo às normas da cultura do espetáculo, conforme o modelo das celebridades.

Como o diz Jurandir Freire Costa, a obsessão pela perfectibilidade física, com as infinitas possibilidades de transformação anunciadas pelas próteses genéticas,químicas, eletrônicas ou mecânicas, essa compulsão do eu para causar o desejo do outro por si, mediante a idealização da imagem corporal, mesmo às custas do bem-estar, com as mutilações que o comprometem, substituem finalmente a satisfação erótica que prometem pela mortificação auto-imposta8. O fato é que abraçamos voluntariamente a tirania da corporeidade perfeita, em nome de um gozo sensorial cuja imediaticidade torna ainda mais surpreendente o seu custo em sofrimento.

A bioascese é um cuidado de si, mas, à diferença dos antigos, cujo cuidado de si visava a bela vida, e que Foucault chamou de estética da existência, o nosso cuidado visa o próprio corpo, sua longevidade,saúde, beleza, boa forma, felicidade científica e estética, ou o que Deleuze chamaria a "gorda saúde dominante". Não hesitamos em qualificá-lo, mesmo nas condições moduláveis da coerção contemporânea, de um corpo fascista - diantedo modelo inalcançável, boa parcela da população é jogada numa condição de inferioridade sub-humana. Que, ademais, o corpo tenha se tornado também um pacote de informações(9), um reservatório genético, um dividual estatístico,com o qual somos lançados ao domínio da biossociabilidade ("faço parte do grupo dos hipertensos, dos soropositivos" etc.), isto só vem fortalecer os riscos da eugenia. Estamos às voltas, em todo caso, com o registro da vida biologizada… Reduzidos ao mero corpo, do corpo excitável ao corpo manipulável, do corpo espetáculo ao corpo automodulável, é o domínio da vida nua. Continuamos no âmbito da sobrevida, da produção maciça de "sobreviventes", no sentido amplo do termo."


Sobrevivencialismo

1 - No rastro de Foucault,Deleuze, Negri, Lazzarato e outros, tal mapeamento foi tentado em “Vida Capital”,São Paulo, Iluminuras, 2003.
2 - G. Agamben, "Ce Qui Reste d´Auschwitz", Paris Payot & Rivages, 1999.
3 - J. Améry, "Par Delà le Crime et le Chatiment", Arles, Actes Sud, 1995
4 - P. Levi, “É Isto um Homem?”, Rio de Janeiro, Rocco, 2000.
5 - M. Foucault, "La Volonté de Savoir", Paris, Gallimard, 1976, p 179.
6 - G. Agamben, "Ce Qui Reste d´Auschwitz", op. cit, p. 205.
7- Francisco Ortega, "Da Ascese à Bioascese, Ou do Corpo Submetido à Submissãodo Corpo", in “Imagens de Foucault e Deleuze”, Rio de Janeiro, DP&A,2002.
8 - Jurandir Freire Costa, “O Vestígio e a Aura: Corpo e Consumismo na Moral do Espetáculo”, Rio de Janeiro, Garamond, 2004.
9 - Paula Sibília, “O Homem Pós-orgânico”, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 2002.


Ver aqui o artigo completo:

http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2792,1.shlm

novembro 05, 2006

"Os principais estratos que manietam o homem são o organismo, mas também a significância e a interpretação, a subjectivação e a sujeição".

"Os principais estratos que manietam o homem são o organismo, mas também a significância e a interpretação, a subjectivação e a sujeição.

O conjunto de todos eles separa-nos do plano de consistência e da máquina abstracta, precisamente onde já não há regime de signos, mas onde a linha de fuga efectua a sua própria positividade potencial, e a desterritorialização a sua potência absoluta.

Ora, a este respeito, o problema fundamental é inverter o agenciamento mais favorável: fazê-lo passar, da sua face orientada para os estratos, para a outra face orientada para o plano de consistência ou o corpo sem órgãos.

A subjectivação leva o desejo a tal ponto de excesso e de desprendimento que este deve, ou afundar-se num buraco negro, ou então mudar de plano. Desestratificar-se, abrir-se a uma nova função, a uma função diagramática. Que a consciência deixe de ser o seu próprio duplo, e que a paixão já não seja o duplo de um para o outro. Fazer da consciência uma experimentação de vida, e a paixão num campo de intensidades contínuas, uma emissão de signos-partículas. Construir o corpo sem órgãos da consciência e do amor. Utilizar o amor e a consciência para abolir a subjectivação: 'para ser um grande amante, o magnetizador e o catalizador, há que ter sobretudo a sabedoria de não ser mais que o último dos idiotas'.

Utilizar o Eu penso para um devir-animal, e o amor para um devir-mulher do homem. Des-subjectivar a consciência e a paixão. Será que não existem redundâncias diagramáticas que não se confundam nem com os significantes, nem com as subjectivações? Redundâncias que já não seriam nódulos de arborescências, mas sim re-nodulações e prolongamentos num rizoma?

Ser gago da linguagem, um estrangeiro na sua própria língua."

(Gilles Deleuze et Félix Guattari, Capitalisme et Schizophrénie. Mille Plateaux, Paris, Les Editions de Minuit, 1980, pp. 167-168)

É curioso como a árvore dominou a realidade ocidental e todo o pensamento ocidental, da botânica à biologia, a anatomia, mas também a gnoseologia...

"É curioso como a árvore dominou a realidade ocidental e todo o pensamento ocidental, da botânica à biologia, a anatomia, mas também a gnoseologia, a teologia, a ontologia, toda a filosofia...: o fundamento-raiz, Grund, roots e fundations.

O Ocidente tem uma relação privilegiada com a floresta e com o desmatamento; os campos conquistados no lugar da floresta são povoados de plantas de grãos, objeto de uma cultura de linhagens, incidindo sobre a espécie e de tipo arborescente; a criação, por sua vez, desenvolvida em regime de alqueire, seleciona as linhagens que formam uma arborescência animal.

O Oriente apresenta uma outra figura: a relação com a estepe e o jardim (em outros casos, o deserto e o oásis) em vez de uma relação com a floresta e o campo: uma cultura de tubérculos que procede por fragmentação do indivíduo; um afastamento, um pôr entre parênteses a criação confinada em espaços fechados ou relegada à estepe dos nômades.

Ocidente, agricultura de uma linhagem escolhida com muitos indivíduos variáveis; Oriente, horticultura de um pequeno número de indivíduos remetendo a uma grande gama de "clones". Não existiria no Oriente, notadamente na Oceania, algo como que um modelo rizomático que se opõe sob todos os aspectos ao modelo ocidental da árvore?

Haudricourt vê aí uma razão da oposição entre as morais ou filosofias da transcendência, caras ao Ocidente, àquelas da imanência no Oriente: o Deus que semeia e que ceifa, por oposição ao Deus que pica e desenterra (picar contra semear15). Transcendência, doença propriamente européia. E, de resto, não é a mesma música, a terra, não tem aí a mesma música. E também não é a mesma sexualidade: as plantas de grão, mesmo reunindo os dois sexos, submetem a sexualidade ao modelo da reprodução; o rizoma, ao contrário, é uma liberação da sexualidade, não somente em relação à reprodução, mas também em relação à genitalidade. No Ocidente a árvore plantou-se nos corpos, ela endureceu e estratificou até os sexos. Nós perdemos o rizoma ou a erva".

Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1, São Paulo, Editora 34, 1995, p. 84

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix, Mil Platôs

Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1, São Paulo, Editora 34, 1995

Tradução brasileira de:

Gilles Deleuze, Félix Guattari, Mille Plateaux, Minuit, coll. « Critique », Paris, 1980, 645 p.


Podem ver esta obra "Mil Platôs" (português do Brasil) aqui:

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix - Mil Platôs Vol. 01

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix - Mil Platôs Vol. 02

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix - Mil Platôs Vol. 03

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix - Mil Platôs Vol. 04

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix - Mil Platôs Vol. 05