setembro 18, 2004

Pensamento técnico e pensamento estético segundo Gilbert Simondon

Pensamento técnico e pensamento estético segundo Gilbert Simondon

Comparar os modos de pensamento só é possível se eles se situarem no mesmo plano; torna-se também necessário entendê-los numa articulação emparelhada, visto que são sempre o desdobramento do pensamento unitário primitivo. Neste contexto, o pensamento estético pode ser definido mais como uma tendência do que como uma espécie que permite articular o pensamento técnico com o religioso. "O pensamento estético é o que mantém a recordação implícita da unidade; […] este modo procura atingir a totalidade do pensamento e recompor uma unidade através duma relação analógica".

No entanto, ao ser visto como uma tendência, o pensamento estético não se reduz ao esteticismo nem muito menos ao mundo das obras de arte. Pelo contrário, "a obra de arte fazendo parte de uma civilização utiliza a impressão estética e satisfaz, talvez artificialmente e de maneira ilusória, a tendência do homem para procurar, quando exerce um certo tipo de pensamento, o complemento em relação à totalidade. […] Mas a obra de arte não reconstrói realmente o universo mágico primitivo: este universo estético é parcial, inserido e contido no universo real e actual proveniente do desdobramento. De facto, a obra de arte mantém (e preserva) sobretudo a capacidade de experimentar a impressão estética, tal como a linguagem permite a capacidade de pensar, sem no entanto ser o pensamento". O que caracteriza a impressão estética é acima de tudo a perfeição do acabamento que lhe confere uma dimensão universal, passando a constituir um equivalente da totalidade mágica.

Desta forma, a estética como tendência pode atravessar uma obra técnica ou uma obra religiosa. "O carácter estético dum acto ou duma coisa é a sua função de totalidade, a sua existência simultaneamente objectiva e subjectiva, como ponto remarcável. Todos os actos, todas as coisas, todos os momentos possuem uma capacidade de se transformarem em pontos remarcáveis de uma nova reticulação do universo. Cada cultura selecciona alguns dos actos e algumas das situações que estão aptas e transformar-se em pontos remarcáveis; mas não é a cultura que cria a aptidão de uma situação para se tornar um ponto remarcável; a cultura coloca barreiras a certos tipos de situação, deixando à expressão estética apenas algumas vias estreitas em comparação com a espontaneidade da impressão estética; a cultura intervém mais como limite do que como criadora". A tendência das técnicas, após terem isolado as figuras do mundo mágico, é a de retornar para o mundo criando uma nova reticulação em que privilegia certos lugares numa lógica híbrida de esquemas técnicos e poderes naturais. É nesse momento de reunião que aparece a impressão estética. Também o pensamento religioso, quando se aproxima de cada cultura e de cada grupo humano, tende a criar uma unidade de rede. A impressão estética, comum ao pensamento religioso e ao pensamento técnico, é a única ponte que permite ligar estas duas metades do pensamento resultantes do abandono do pensamento mágico".

Vejamos quais são as características do pensamento estético que lhe permite esta articulação, este voltar à unidade. Em primeiro lugar, a estética preserva a estrutura inicial de rede, de pontos-chave, tanto no pensamento técnico como no pensamento religioso. Em segundo lugar, "o pensamento estético, situando-se no intervalo entre a subjectivação religiosa e a objectivação técnica, limita-se a concretizar as qualidades de fundo através das estruturas técnicas". Terceiro: não podemos situar a realidade estética nem no objecto nem no sujeito, visto que ela se poderá transformar "na organização intencional duma realidade natural" ou continuar ligada ao homem, ao sujeito, sendo "uma modulação da voz, uma mudança no discurso, uma maneira de se vestir". Por último, o que define o objecto técnico é fundamentalmente a inserção e não a imitação. Numa palavra, podemos afirmar que "a arte é o que estabelece a transdutividade dos diferentes modos de pensamentos entre si; a arte é aquilo que no modo continua a ser não-modal, como se em torno do indivíduo restasse uma realidade pré-individual associada a ele permitindo-lhe a comunicação na instituição do colectivo".

José Pinheiro Neves

Citações de:

Gilbert Simondon, Du mode d'existence des objets techniques, Paris, Aubier, 1989.