dezembro 03, 2009

Deleuze como "surfista"

O "surf" como inspiração do filósofo francês Gilles Deleuze


"Afora os aspectos que reúnem em um só platô as filosofias de Nietzsche e Deleuze, há um que considero primordial e marca a aliança entre os dois pensadores: o pensamento como receptor da vida é tão-somente movimento. Movimentos e superfícies organizam um jogo do pensamento que Deleuze chama "o jogo ideal", e que pode ser comparado pelas suas especificidades com os esportes. Mas, se o pensamento, por seu movimento intempestivo, supera todos os limites, o esporte pode tão-só encontrar sua validade no próprio limite.

O surf é um jogo, como todo esporte, mas equipado de um aspecto lúdico que lhe é intrínseco. O surf pode tão-só se emancipar mediante duas condições: o surf é desenvolvimento da alegria pelo corpo, surfar é criar movimento. O que qualifica um bom surfista é, pois, a facilidade com a qual ele realiza seu movimento numa superfície de jogo pertencente a uma velocidade nômade do movimento e do tempo da onda.

No entanto, ele brinca de brincar com a onda excedendo os limites da própria onda e de suas regras não estabelecidas. Sua ação poderá superar a chegada da vaga, fazendo dos limites o lugar de transmutação da conformidade e da violência da calma da própria onda. Superar regras e limites é o que Deleuze nomeia O jogo ideal e que, pessoalmente, chamo um movimento louco para um jogo ideal.

Jogar para além do acaso, no acaso das próprias ondas, é uma arte, um conhecimento de seu corpo e do corpo da onda: gorda ou magra, ela tem um corpo, um corpo sem órgãos, uma leveza ativa, que é a própria leveza do ser em devir. Um limite vale tanto pelo que contém quanto pelo que rejeita, e marca a sedentariedade do surfista à espreita da boa onda. Se o surfista é o "sedentário do esporte", é parado que ele se movimenta mais: parar é ter o corpo em movimento, em articulações e namoro com a onda. Devir pássaro, ele voa e não precisa dos órgãos. Seu movimento líquido encontra na vaga seu elemento: ele é natureza com a natureza.

O jogo ideal é sem regras, sem vencedor e sem vencido. É a afirmação de todos os acasos. É o jogo do contra-senso, pois não põe um conjunto de objetos distintos, cujo agenciamento organizaria um sentido, sob o signo da boa estrela ou a boa sorte. Os objetos do jogo ideal são impessoais, não se organizam pela fórmula ganhadora que daria os dados, mas pelos lances de dados a cada vez.

O mar não tem gramática, apenas alfabeto órfão: sua única verdade é a efemeridade da verdade. Essa negação do jogo tradicional impõe a afirmação do acaso proscrito, sem aniquilar, porém, o jogo: eleva-o a sua plena potência do acaso. A onda é o acaso do surfista, como o tubo é para ele o experimento da imanência.

O surfista é a onda com a onda, e não onda sobre a onda; ele não existe apenas para aquilo que o tornará vencedor, mas se realiza afirmando o acaso; temos aqui certamente uma bela definição do ser, sempre em devir. É um puro sensitivo à escuta do meio no qual ele dança com seu corpo-onda para não "dançar" na vida. Escorregar é antes de tudo reduzir o esfregão, o caldo, a "vaca".

O surf é caracterizado pela superfície na qual se evolui, superfície que como o fora não é o exterior, mas a possibilidade de um fora/dentro, desejo maior do surfista. Ele fica à espreita do grande momento, num instante de duração não linear do tempo que tatua o corpo não com marcas visíveis, mas com um devir imperceptível que inebria a superfície de um dentro em núpcias com o fora. É o momento em que o surfista fura a onda, torna-se tubo com o tubo.

A inércia é aparência, é silêncio para não afugentar os devires. Trata-se de perfurar a onda e não de ficar sob a onda, o que é muito mais rico do ponto de vista do corpo projétil. O surfista se situa num experimento ou posição claramente contracorrente, sem jogo de palavras, mas que o auxilia em seu desejo de sensação plena.

Mormente, o surfista, ao contrário do nadador, dispõe de um material extra-humano: a prancha e a força motora extracorporal, isto é, a vaga. É claro que o trabalho, a técnica, o treino, a escuta do corpo, da onda e alianças desses dois elementos nutrem a sensação do surf-imagem-movimento, inserido numa filosofia vitalista, a imanência, uma vida.

Sentir a água passar é uma sublime sensação, mas é o corpo que passa na água, pois a água é imóvel e o corpo avança; isso é verdade para o surfista e para o nadador. César Augusto Cielo, atual campeão e recordista mundial dos 100 metros livres em Roma, é sem dúvida uma grande ilustração desse corpo em movimento.

Com Deleuze, pensar torna-se um esporte, entretanto, se o esportista aplica-o, desenvolve também uma idéia do jogo. Praticar um esporte é também jogar, é acolher um pensamento como transversalidade do esporte.

Deleuze, filósofo surfista da imanência? 

Experimentadores de um fora que é dobra e desdobra, os surfistas inspiraram Deleuze nos últimos anos de sua vida: "A desdobra não é o contrário da dobra, mas segue as dobras até outra dobra. Dobras de vento, de águas, do fogo e da terra, e dobras subterrâneas de filões na mina. Os desdobramentos sólidos da 'geografia humana' remetem, inicialmente, à ação do fogo e, depois, à ação das águas e dos ventos sobre a terra, um sistema de interações complexas".

"Todos os novos esportes - surf, windsurfe, asa delta - são do tipo: inserção numa onda preexistente. Já não é uma origem enquanto ponto de partida, mas uma maneira de colocação em órbita. O fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande onda, de uma coluna de ar ascendente, 'chegar entre' em vez de ser origem de um esforço".

Gibus de Soultrait, surfista, estudante de filosofia, procura Deleuze. Dessa relação, entre um filósofo e um surfista, nasce uma correspondência, virtual/real: "Quando se pensa no homem que viveu no final de sua vida isolado em seu apartamento em Paris, por causa de uma saúde deficiente, é de se admirar que ele tenha percebido com tanta clareza o eco de nossas ondas e nosso modo de se deixar tomar por elas surfando. A isso também, nós surfistas, não poderíamos ficar indiferentes. Essa abertura da filosofia, à nossa prática do oceano, por um de seus grandes mestres do século XX, era a prova de uma juventude e de uma acuidade com o exterior, raras. Foi então, que nos apressamos, entramos em contato com Deleuze, através de nosso editor... e, para nossa surpresa, à nossa simples solicitação de que nos honrasse com algumas linhas para nossa revista, ele respondeu não com uma recusa, mas com a vontade de conhecer o surf".

Aproveitando a ocasião, os surfistas o convidaram a participar da festa "A Noite do Escorrego", no célebre cinema Rex de Paris. "Trazer esse filósofo tão delicado e discreto para tamanha muvuca, encontro de escorregadores frenéticos, tinha algo de extraordinário, inédito".

O filósofo, enfermo, cansado foi, discretamente, à "Noite do escorrego", "La nuit de la glisse". Alguns dias depois, os surfistas receberam uma mensagem de Gilles Deleuze: "Obrigado por vossa delicadeza. Fui ao Rex, o público jovem despertou uma mistura de angústia (leve) e de jubilação, mas, sobretudo, os filmes me impressionaram muito. Há ali, evidentemente, uma combinação matéria-movimento muito nova. Mas também uma outra maneira de pensar. Estou certo de que a filosofia é concernida pelo surf".

O surf é a vida em vibração e sensações cósmicas. O oceano é o livro do surfista, sua prancha uma caneta, e cada onda um poema".

O Vertebral 
in http://overtebral.blogspot.com.br/2009/11/deleuze-surfista-da-imanencia.html

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