dezembro 03, 2004

"Existem duas formas de ler um livro..." - Gilles Deleuze

"Existem duas formas de ler um livro: ou o consideramos como uma caixa que remete para o interior, e então vamos procurar os seus significados, e depois, se formos ainda mais perversos ou corrompidos, partimos à procura do significante. E comentaremos, interpretaremos, pediremos explicações, escreveremos o livro do livro, até ao infinito.

Ou então, lemos de outra maneira: consideramos o livro como uma pequena máquina a-significante; o único problema é «será que isto funciona, e como é que isto funciona?». Como é que isto funciona para si? Se não funcionar, se nada acontecer, pegue então noutro livro. Esta outra leitura é uma leitura em intensidade: há qualquer coisa que passa ou que não passa. Não há nada a explicar, nada a compreender, nada a interpretar. É uma espécie de ligação eléctrica. Conheço pessoas sem cultura, que compreenderam imediatamente o que era o corpo sem orgãos, graças aos seus próprios «hábitos», graças à maneira como fazem um corpo sem orgãos para si.

Esta outra forma de ler opõe-se à primeira, porque relaciona imediatamente um livro com o Defora. Um livro é uma pequena engrenagem numa maquinaria exterior muito mais complexa. Escrever é um fluxo entre outros e que não tem qualquer privilégio relativamente aos outros, e que entra em relações de corrente, de contracorrente, de turbilhão com outros fluxos".

Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, 1990, Les Éditions de Minuit, pp. 17-18.

setembro 18, 2004

Pensamento técnico e pensamento estético segundo Gilbert Simondon

Pensamento técnico e pensamento estético segundo Gilbert Simondon

Comparar os modos de pensamento só é possível se eles se situarem no mesmo plano; torna-se também necessário entendê-los numa articulação emparelhada, visto que são sempre o desdobramento do pensamento unitário primitivo. Neste contexto, o pensamento estético pode ser definido mais como uma tendência do que como uma espécie que permite articular o pensamento técnico com o religioso. "O pensamento estético é o que mantém a recordação implícita da unidade; […] este modo procura atingir a totalidade do pensamento e recompor uma unidade através duma relação analógica".

No entanto, ao ser visto como uma tendência, o pensamento estético não se reduz ao esteticismo nem muito menos ao mundo das obras de arte. Pelo contrário, "a obra de arte fazendo parte de uma civilização utiliza a impressão estética e satisfaz, talvez artificialmente e de maneira ilusória, a tendência do homem para procurar, quando exerce um certo tipo de pensamento, o complemento em relação à totalidade. […] Mas a obra de arte não reconstrói realmente o universo mágico primitivo: este universo estético é parcial, inserido e contido no universo real e actual proveniente do desdobramento. De facto, a obra de arte mantém (e preserva) sobretudo a capacidade de experimentar a impressão estética, tal como a linguagem permite a capacidade de pensar, sem no entanto ser o pensamento". O que caracteriza a impressão estética é acima de tudo a perfeição do acabamento que lhe confere uma dimensão universal, passando a constituir um equivalente da totalidade mágica.

Desta forma, a estética como tendência pode atravessar uma obra técnica ou uma obra religiosa. "O carácter estético dum acto ou duma coisa é a sua função de totalidade, a sua existência simultaneamente objectiva e subjectiva, como ponto remarcável. Todos os actos, todas as coisas, todos os momentos possuem uma capacidade de se transformarem em pontos remarcáveis de uma nova reticulação do universo. Cada cultura selecciona alguns dos actos e algumas das situações que estão aptas e transformar-se em pontos remarcáveis; mas não é a cultura que cria a aptidão de uma situação para se tornar um ponto remarcável; a cultura coloca barreiras a certos tipos de situação, deixando à expressão estética apenas algumas vias estreitas em comparação com a espontaneidade da impressão estética; a cultura intervém mais como limite do que como criadora". A tendência das técnicas, após terem isolado as figuras do mundo mágico, é a de retornar para o mundo criando uma nova reticulação em que privilegia certos lugares numa lógica híbrida de esquemas técnicos e poderes naturais. É nesse momento de reunião que aparece a impressão estética. Também o pensamento religioso, quando se aproxima de cada cultura e de cada grupo humano, tende a criar uma unidade de rede. A impressão estética, comum ao pensamento religioso e ao pensamento técnico, é a única ponte que permite ligar estas duas metades do pensamento resultantes do abandono do pensamento mágico".

Vejamos quais são as características do pensamento estético que lhe permite esta articulação, este voltar à unidade. Em primeiro lugar, a estética preserva a estrutura inicial de rede, de pontos-chave, tanto no pensamento técnico como no pensamento religioso. Em segundo lugar, "o pensamento estético, situando-se no intervalo entre a subjectivação religiosa e a objectivação técnica, limita-se a concretizar as qualidades de fundo através das estruturas técnicas". Terceiro: não podemos situar a realidade estética nem no objecto nem no sujeito, visto que ela se poderá transformar "na organização intencional duma realidade natural" ou continuar ligada ao homem, ao sujeito, sendo "uma modulação da voz, uma mudança no discurso, uma maneira de se vestir". Por último, o que define o objecto técnico é fundamentalmente a inserção e não a imitação. Numa palavra, podemos afirmar que "a arte é o que estabelece a transdutividade dos diferentes modos de pensamentos entre si; a arte é aquilo que no modo continua a ser não-modal, como se em torno do indivíduo restasse uma realidade pré-individual associada a ele permitindo-lhe a comunicação na instituição do colectivo".

José Pinheiro Neves

Citações de:

Gilbert Simondon, Du mode d'existence des objets techniques, Paris, Aubier, 1989.

junho 27, 2004

Signo, tempo e consciência: Gilles Deleuze e António Damásio. Face a face entre o organon semiótico e as neurociências

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa


"No presente artigo propomo-nos, nesta linha epistemológica de travessias, percorrer hiatos que atravessam as neurociências e a reflexão semiótica e até filosófica. O tema empurra-nos para a ligação entre virtual e real, mas também para os modos diversos com que a consciência torna em figura os eventos já actuais.
Diga-se também que a dissimetria metodológica que é verificável entre um filósofo e semiótico como Gilles Deleuze e um neurocientista como António Damásio, director do Departamento de Neurologia da Universidade de Iowa (EUA), autor de Descartes´Error-Emotion, Reason and the Human Brain (1994) e do recente The Feeling of What Happens (1999[2] ), estimula-nos particularmente a perscrutar as ligações e os modos que pretendemos inquirir".