dezembro 08, 2005

CORPOS EM TRÂNS(ITO) - SOBRE DROGAS E OUTRAS A(FE)TIVAÇÕES - VALTER A. RODRIGUES

CORPOS EM TRÂNS(ITO) - SOBRE DROGAS E OUTRAS A(FE)TIVAÇÕES

Autoria de VALTER A. RODRIGUES

13 de novembro de 2005

Olá, pessoal, lembrei-me deste texto, de 1999, gostaria de compartilhá-lo com vocês, conversar sobre etc.

Se a maconha, o álcool, os alucinógenos em geral são desterrritorializantes em um primeiro momento de uso, da mesma forma que o tabaco, a cocaína são territorializantes desde o primeiro momento de seu consumo, em um segundo momento todas as drogas assumem um caráter sobreterritorializante.1 Isto é, atuam como cristalizações de um modo de experiência da qual é difícil despregar-se sem o pânico da desagregação; a um máximo de desterritorialização/territorialização, não mais como processo, mas como um estado de cristal, seja na permanente deriva, seja na permanente pró-atividade, o que temos é um movimento em moto-perpétuo do qual não se percebe o limite (ou o fim), donde o caráter ora ansioso, ora angustiado de toda abstinência.Embora muitas pesquisas e demonstrações clínicas indiquem a ação das drogas sobre os neurotransmissores (bloqueio, liberação ou simulação de dopamina, serotonina etc.), sua potência (ou não) de destruição de neurônios merece ser questionada, mesmo que não percamos de vista essa possibilidade.2Ora, a experiência de desagregação não é exclusiva das drogas. Desagregar implica sempre uma reordenação de componentes que perdem sua atratividade e suas relações de vizinhança e de afetabilidade, logo, sua conetividade (bastante claro quando pensamos em processos moleculares físicos e químicos). Quando essas experiências são existenciais, é preferível o uso da palavra desterritorialização. Desterritorializar é desfazer/refazer conexões, abandonar/construir campos de consistência (de uma relação, de uma língua, de uma habitação, de uma referência, de um modo de vida...), é deixar-se atravessar por fluxos advindos dos encontros com outros corpos (humanos e não-humanos [a droga é um corpo...]), deixar-se intensificar em direção a outros territórios; é, enfim, abrir-se aos devires, permitir-se a heterogênese.

Que a droga atue como desterritorializante (qualquer droga, mesmo as predominantemente territorializantes, como passagem de um estado a outro; estas iludem da potencialização do já conhecido, como a cocaína, as demais estão abertas ao estranhamento, como o ácido), o faz na medida em que atua/funciona/constitui-se como fator de a(fe)tivação. Recorremos a elas quando nossos corpos/almas perdem a vibratibilidade, não se autonomizam, não se abrem para os devires.3 Daí que o "argumento" de entrada na droga não seja nem o prazer, nem a angústia, nem a alta/baixa auto-estima, ou a auto-destrutividade, muito menos o descompasso adolescente (argumentos morais que sustentam os debates criminalização/ discriminalização), mas tão-somente como um não-sei-quê de desejo de outra vida, de outras formas de experiência que façam fugir o cotidiano (e não, ainda no registro moral, a idéia de escapismo, de fuga do cotidiano). A bobagem é sua demonização, ou, em contrapartida, seu endeusamento (terror e fascínio não cessam de se encontrar como constitutivos de um mesmo campo). A droga funciona ou não como ativadora muito mais por uma disposição (deliberada ou por pura inquietação difusa) a novas conetividades, à expansão, à abertura a novos mundos, do que por ela mesma, isto é, por sua ação química. Embora existam drogas que ativam quimicamente mais ou menos à revelia dessa disposição, sabemos que a sensibilidade à droga é singular. Não negamos a existência da ação imperativa de algumas drogas. Ao contrário: trata-se de reconhecer-lhes o limiar de suportabilidade; essas, à não disposição aos seus efeitos, opõem seu "além do limite" e, longe de abrirem à experiência, só o fazem expondo da experiência seus buracos negros: o terror, a crise, o surto.

O importante é que possamos reconhecer que não há drogas que por-si provoquem crises/surtos e outras não, assim como não há acidentes que sejam em si mais ou menos traumáticos, como às vezes ouvimos (é que fulano não foi amado na infância...; sofreu assédio sexual ou foi violentado na infância/adolescência...; perdeu os pais em um acidente...; só se entregava a jogos de videogame violentos...; cultivava Marilyn Manson...; testemunhou um acontecimento violento com pessoas afetivamente próximas...; passou pelo pau-de-arara nos anos de chumbo do regime militar etc.). Não há nada que seja em-si bom ou mau, como já demonstrou extensivamente Espinosa com sua Ética não-normativa. Assim, todas as entradas podem ser boas, a questão é o que fazer com elas. O que fazer e como fazer. Sendo os critérios extramorais, a única regra é a da prudência (não podemos esperar boas experiências e devires da ingestão de um veneno, por ex., ou da tentativa de negociação da bolsa e da vida com um assaltante armado...).Apesar de tomar como ponto de partida a potência transformadora (seja ela criadora ou destrutiva) da droga, é seu segundo momento que merece atenção, e ele só pode ser reconhecido se tomarmos como princípio essa regra fundamental da experimentação, que é a da prudência. Se a qualidade de um encontro não está em nenhuma transcendência, e se ela não obedece a nenhum a priori que daria uma suposta essência (o intrinsecamente bom ou o intrinsecamente mau), qual o critério de reconhecimento dessa qualidade? A princípio, trata-se da experiência propiciadora de uma aprendizagem, algo que exige talvez muito maior rigor e sensibilidade do que o confortável princípio da regra já dada, do território já fixado e reconhecível. Seguindo o belo texto de Suely Rolnik, Cartografia sentimental - transformações contemporâneas do desejo,4 podemos dizer :
estar atento a tudo aquilo que permite à vida se expandir, se inventar, a ativar as forças, e ser rigoroso com tudo aquilo que surja como reativo, como despotencializante, seja de um sonho, de um movimento, de um vínculo, de uma expressão.Com a droga, seu segundo momento - que é o do risco - é aquele em que ela deixa de ser a(fe)tivadora para dobrar-se sobre o corpo e constituir-se nele de um modo cristalizado. Não se trata aqui de considerarmos o hábito que leva a demandar mais e mais doses para que a vibratibilidade seja ativada, mas de sua performação enquanto intrínseca a determinado estado de corpo, vale dizer, quando ela passa a ser um componente determinante de uma dada subjetividade. Isto é, quando ela literalmente adere, enquanto componente, àquele corpo que se dispõe à experimentação de forma tal que, sem sua presença, nenhuma experiência se torne possível. Assim, quando a droga passa a ser fator determinante, função (no sentido em que se toma na matemática este termo), na constituição do corpo, nesse momento ela não lhe permite mais desdobrar-se senão sob sua ação. É o que chamamos comumente dependência, esse momento em que a droga não serve mais para abrir linhas de fuga, tornando-se ela própria, redutivamente, essa "linha de fuga". O que, em outro lugar,5 indiquei como fundamentador da bad trip.Claro que esse ponto de retorno, em que o movimento de dobra infinita do mundo/desdobra finita do corpo que está na própria produção da subjetividade6 perde sua processualidade para depositar-se num processo de individualização despotencializante, e não mais de singularização afirmativa/potencializante, não ocorre só com as drogas. Nas relações intersubjetivas (ditas interpessoais), se só me reconheço em consistência com outro corpo (esse corpo específico, esse rosto, essa pessoa) - o que chamamos, na psicologia, de simbiose, de interdependência afetiva, como em muitos casais capturados em suas armadilhas de retenção um de outro, ou em algumas relações mãe-filho altamente edipianizadas - a representação do si-mesmo sem o outro corpo torna-se uma impossibilidade. Enquanto constituímos compossíveis, estamos na composição de mundos que podem se transformar (o entre, o com, o intersubjetivo - condição da ética7 -, na constituição de territórios múltiplos). Quando estamos no impossível (sem o outro, um objeto, uma causa... nada poder ser), só podemos reconhecer campos totais, o que, em seus esforços de compreensão, os psicólogos, ao habitarem as (falsas) divisões indivíduo-sociedade, interior-exterior, pensam como introjeção (do exterior para o interior) ou projeção (do interior para o exterior), preservando, sem reconhecê-los, os níveis de semiotização da individualidade e da realidade em uma reprodução e uma regressão infinitas. Nesses projetos, o corpo do outro confunde-se com meu corpo, é meu corpo, porque meu corpo só se reconhece em relação a esse corpo. Eterna captura dos corpos nos mecanismos da paixão (que, não podemos esquecer, indica mais freqüentemente as formas de padecimento em que nos engajamos, e muito menos suas alegrias). Como poderia ser diferente com as drogas? O risco está no fato de que é mais fácil desgarrarmos de uma paixão, por mais doloroso que isso se apresente (em que dois supostamente desejam e, bem ou mal, se diferenciam, podendo se reinventar em suas experiências extracampo), do que nesse enlace narcísico corpo-droga de busca continuada de reativação da própria vibratibilidade que confunde os afetos do corpo em seus encontros com outros corpos com as imagens que parecem significá-lo, como falta a ser, como pura carência, desejante.


Notas:

1-Reterritorializante é o termo utilizado por Deleuze & Guattari; a opção pelo termo sobreterritorializante é feita aqui para preservar, no termo, o über freudiano (über-ich, sobre-eu, melhor que super-eu, ou superego, na medida em que se trata mais de uma sobredeterminação despotencializante que de uma potencialização egóica; embora não seja esse o sentido do superego freudiano, é interessante observar que as práticas psi adaptativas, ou de fortalecimento dos aspectos "positivos" do eu, como postula a atual neurolingüística, não deixam de tomar essa sobredeterminação que é tanto da cultura quanto da linguagem na constituição do eu como algo "natural", já que, supõe-se, ele se integra à realidade tomada como verdade]. A reterritorialização, conforme a entendemos em DG, é um retorno modelizante e despotencializador de intensidade, despotencialização do desejo enquanto artifício produtor de realidade social (estratégico, como todo artifício), que "recupera" o território que se desagregou por incorporação dos efeitos da alterabilidade do movimento desterritorializante. Movimento que vai da ação instituinte para sua cristalização em um novo instituído, assimilando-o ao quadro/contexto anterior, como se fosse de um progresso e não de uma ruptura que se trata. Exs.: a recuperação, enquanto moda, movimento, estilo, da desterritorialização hippie dos anos 60, desgarradora, em sua emergência, em relação aos modelos vigentes; na sociedade permissiva, o "você pode" da liberdade, como um "possível já dado", que se transforma no imperativo "você deve", o que retira da liberdade seu caráter de conquista para apresentá-la como escolha, opção (em forma regrediente, reencontramos o famigerado livre-arbítrio). Ver a discussão de Slavoj Zizec sobre as sociedades de reflexibilização em "O super-ego pós-moderno" (FSP, caderno Mais!, sobre as Sociedades de Risco, maio/99).

2- O corpo tem como destino a própria desagregação, e não me parece questionável que agentes químicos possam acelerar ou retardar esse processo. O limite da desagregação, sabemos, é a morte e a subseqüente deterioração dos tecidos, na medida em que sua desativação - de todo e qualquer tecido - tem como resultado sua perda de agregação molecular.

3 Assim, mudar de ares, viajar, sair de um circuito de freqüentação para outro, ver um filme, ir a uma exposição, ouvir uma música ou experimentar um estimulante (droga), iniciar uma dieta, uma plástica, iniciar um curso, são, a princípio, uma busca de a(fe)tivação, de resgate da vibratibilidade.

4 São Paulo, Estação Liberdade, 1990. Boa parte da linguagem aqui utilizada resulta de uma apropriação da linguagem da autora nessa obra, sem necessariamente numa relação de fidelidade aos seus conceitos.

5 Políticas do fora, políticas do dentro; percursos incidentais pela desordem da cultura (1994-1997), ao mencionar aquele que se coloca frente ao horizonte confundindo-se com esse horizonte.

6 Ver Gilles Deleuze, A dobra; Leibniz e o barroco (Campinas, Papirus, 19 )

7 Ver Marilena Chauí, Ética e violência, Colóquios com Marilena Chauí, Porto Alegre/São Paulo, 1998.

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